Teresa Vai com as Outras

 Teresa Vai de Férias fechou o seu ciclo, um blog que se transformou num livro, num projecto de turismo e numa empresa de animação turistica. Nascida com o Covid, "passou à reserva" em 2024, ano em que o cliclo se fecha, pois é a Teresa Vai de Férias que dá vida ao projecto de mestrado que irei defender ainda este ano.

Ainda hoje me espanto com o alcance que este blog teve, uma brincadeira que me levou onde estou hoje, tenho dito tanta vez que mal sabia eu, quando comecei a escrever, onde tudo isto me ia levar.

Tenho exatamente a vida que sonhei ter mas tenho muitas saudades de escrever e não tenho paciencia para ser super moderna e fazer aqueles videozinhos para o instagram e o tiktok. Mas tenho saudades de contar histórias, não de fazer videos mas de vos levar comigo nas histórias que brotam na minha cabeça.

Não resisto a começar um novo projecto, e assim, lembrei-me do Teresa Vai com as Outras ( se a Anita pode e foi um sucesso porque é que eu não posso?).

A Teresa Vai com as Outras são histórias, mais ou menos de ficção, sobretudo de mulheres, as vossas histórias, o fio condutor vou ser eu, a unica personagem que não vai ter um nome ficticio com histórias com um fundo real.

Na minha vida atual cruzo-me com dezenas, centenas de mulheres, de todas as idades, de várias nacionalidades, com varios niveis de ensino, todas contam histórias e todas têm histórias para partilhar.

Por enquanto não há imagens, nem logo, nem essas coisas que nos ensinam em marketing, por enquanto só vai haver histórias, verdadeiras ou fição, inspiradas ou inspiradoras. Assumo plenamente que estou se quiserem no inicio dos anos 2000, mas confesso que preciso respirar do excesso de conteudo visual, que nos é dado em doses maciças, que preciso de me reencontrar com a minha imaginação e que acredito vocês precisam de voltar a sonhar os vossos sonhos, não os dos outros.  


Prometo não surpreender

“A fadiga que sentimos não é tanto do trabalho acumulado, mas de um quotidiano feito de rotina e de vazio. O que mais cansa não é trabalhar muito. O que mais cansa é viver pouco. O que realmente cansa é viver sem sonhos”.

Mia Couto

 

Quando era miúda era um verdadeiro “bicho do mato”, enrolava-me nas saias da minha mãe mal aparecia alguém desconhecido, já a antever o fatídico “dá um beijinho a esta tia”, que por norma era sempre uma velha, de pele toda enrugada e sem dentes na frente. Sim a minha infância foi bem regada com replicas reais da bruxa má e eu, que até tinha o meu lado de Cinderela, mas não o sabia, em vez do príncipe encantado, sai-me sempre a tia velha, vestida de escuro, de olhos pequenos e penetrantes, a avançar para mim de beiças estendidas.

Um dia a minha mãe desistiu, desistiu de passar vergonhas e perante os meus olhos gigantes e escuros e pestanudos, abertos de medo de tal forma que pareciam querer saltar e ganhar vida própria, ela coitada, começou a olhava-me de cima enquanto encolhia os olhos e dizia a mais uma tia –“ela é assim, é estranha, não é como os outros…” e desanimada, foi desistindo de me obrigar a cumprimentar, e eu desanimada acreditava que não ser como os outros era algo terrível.

Quando um dia, uns anos mais tarde, ganhei coragem e disse em casa que queria ser advogada, ela deu uma gargalhada e disse bem alto – “Tu? Nunca vais conseguir falar à vontade para ninguém, como é que vais defender os teus clientes em tribunal? “ e eu que até então tinha passado tantos anos escondida nas suas saias e por isso não conhecia mais ninguém, acreditei porque não tinha razão para duvidar.

Durante muitos anos passei muito tempo sozinha, brincava normalmente debaixo da mesa da sala, com as minhas bonecas e os tachinhos porque menina tinha de aprender desde cedo as lides da casa e a tratar dos filhos, porque menina tinha de casar e de dedicar a vida ao marido e aos filhos.    

Mas eu não sonhava com casamento, sonhava que vivia sozinha, que era dona das minhas escolhas, que trabalhava muito, mas era independente, que estudava. E um dia o meu pai levou-me a ver os aviões, contou-me nesse dia que tinha andado a construir a pista onde poisavam e descolavam aqueles aviões, mas eu não ouvi, aliás, realmente só o ouvi muitos anos mais tarde quando ele estava quase a morrer, nesse dia ele falou com orgulho do seu contributo para o desenvolvimento, de como tinha orgulho no seu trabalho mas eu, de olhos gigantes, escuros e pestanudos, só via mulheres muito elegantes a subir devagar as escadas do avião, para depois serem engolidas por aquele bicho gigante de metal e foi possivelmente nesse dia que comecei a sonhar. Enquanto o meu pai sonhava com o seu trabalho duro na construção da pista dos aviões, eu sonhava com elegância e independência.

Desse dia em diante nunca mais deixei de sonhar, aquilo colou-se a mim como uma doença e ia comigo para todo o lado, e foi assim que em vez de bonecas passei a gostar de passear os livros da Anita, aprendi a ler comecei a imitar que apresentava o telejornal enquanto lia os jornais, do dia anterior, que os meus irmãos bem mais velhos levavam para casa. Na escola primária as minhas composições ganhavam prémios e isso dava-me alento para continuar a sonhar.

Aos poucos foi-me esquecendo que era um bicho do mato e que me escondia nas saias da minha mãe, não sei se porque as velhas foram morrendo ou se porque eu deixei de as ver, mas o que é certo é aos poucos a minha mãe trocou o – ela é assim estranha, não é como os outros…primeiro pelo silencio e depois por – Olha lá Zé, é tal e qual a tua mãe…. Para terminar, numa das últimas vezes que a levei a almoçar fora em que por forças das circunstâncias tive de a levar a um almoço de empresários, cuja reunião foi conduzida por mim. Quando chegamos ao carro, ouvi um dos últimos raspanetes, quando liguei o motor e perguntei, então gostou do almoço? Ela, de olhos cerrados, pequenos e escuros olhou para mim e disse – Tu sempre me saíste uma grande maria-rapaz, sozinha a falar para tanto homem!

Hoje acredito que por detrás deste raspanete estava também bastante orgulho, tal como quando ela me perguntava de eu não tinha medo de ir para o estrangeiro, tanta vez e sempre sozinha, ou quando me perguntava, antes de todos termos GPS, como é que eu ia para o Porto, conduzia o carro que a TAP tinha lá em cima e nunca tinha medo de que me acontecesse alguma coisa.

A fadiga só havia de chegar anos mais tarde, quando a rotina foi pintando a minha vida de cinzento e eu fui deixando, e aos poucos o cinza clarinho escureceu, e um dia o cinza já não era cinza era preto e o preto apagou os sonhos e eu deixei de sonhar só que não sabia, e porque não sabia nada fazia, e como nada fazia cada dia estava mais escuro e um dia já não havia dia, só noite e a noite não tinha lua nem estrelas, só um nevoeiro que se colava à pele e tudo cobria. Foi nesse dia em que eu deixei de sonhar que a fadiga, o cansaço e a rotina passaram a ser os meus companheiros, foi nessa altura que estava tão cansada de viver porque vivia sem sonhos só que como tinha perdido a capacidade de sonhar já não sabia onde queria chegar.     

Então um dia acordei e descobri como estava perdida! Nessa manhã olhei para dentro de mim e vi uma encruzilhada, num caminho via-me a mim mesma, sozinha numa estrada deserta, de cabeça baixa, pesada, caminhando devagar sem nada esperar e sem nada querer. No outro caminho não via quase nada, mas havia muita luz, havia sol, havia flores e arvores e embora um nevoeiro branco e sedoso estivesse a cobrir o caminho, percebia-se o som de vozes animadas. Foi no dia que abracei o desconhecido que voltei a sonhar, primeiro devagarinho, muito a medo, até por agora já não tinha as saias da minha mãe para me esconder, depois com mais certeza, e finalmente de cabeça bem levantada, e à medida que foi caminhando os sonhos foram voltando e à medida que os sonhos voltaram eu, de olhos gigantes, escuros mas já não tão pestanudos, voltei a acreditar.                

      

    

O Deus de Todas as Coisas


“Ela dançou para ele. Naquele pedaço de terra em-forma-de-barco. Viveu.

Ele encostou-a a si, repousando as suas costas na mangueira, enquanto ela chorava e ria ao mesmo tempo. Então, durante o que pareceu uma eternidade, mas realmente não passou de cinco minutos, ela dormiu apoiada nele, as costas dela contra o peito dele(…).

Ela acordou ao som do coração dele batendo contra o seu peito (…). Os braços dele continuavam a abraçá-la e ela sentia o movimento dos seus músculos enquanto as mãos brincavam com uma fronda seca de palmeira”.

Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas

 

Era só mais uma sessão de autógrafos pensava eu sentada a uma secretária, numa sala onde repetia o que fiz tanta vez nos últimos tempos e que nunca imaginei ser possível. Estava a autografar o meu primeiro livro, num espaço composto de pessoas que deambulavam e conversavam animadamente entre si. Às vezes ainda sinto vontade de me beliscar, parece-me que vivo um sonho, o meu primeiro livro, uma edição independente depois de ter sido quase vítima de uma fraude, mas essa história fica para outra altura.

Era só mais uma sessão de autógrafos, normalmente as mulheres são quem mais me procura. Tenho o hábito de as fixar no olhar antes de lhes dedicar um pequeno texto enquanto lhe pergunto o nome, e quando entrego o livro devolvo com um sorriso e volto a olhar nos olhos.

Levantei os olhos vi um uma mulher dos seus setenta anos, fininha, cerca de 1,60m, cabelo grisalho, um pouco acima dos ombros, cuidadosamente arranjado, uns olhos pequeninos que se cerravam ainda mais com um grande sorriso, bonito e transparente que se via vinha do fundo da alma, e um pouco atrás, um homem alto, pela mesma idade, com um ar tranquilo, que olhava para as duas sem nada dizer. Observei curiosa, na minha frente estava um casal feliz.

- Boa tarde, disse – Qual o nome que devo colocar no livro?

-Amélia, foi a resposta.

Baixei os olhos e concentrei-me na dedicatória, normalmente aproveito o que observo para personalizar o texto, pensei uns segundos que fazia sentido escrever sobre felicidade quando a Amélia me interrompeu para me dizer, - Sabe, viemos de propósito de Alcobaça para lhe pedir este autografo. Parei e percebi, a Amélia tinha uma história para partilhar.  Levantei em definitivo os olhos do livro semiaberto e devolvi o mesmo sorriso e ela completou – Eu e o meu João viemos de propósito de Alcobaça, sabe encontrei as suas histórias sobre viagens no Facebook, muito coisa boa já me aconteceu no Facebook. Agora a Amélia tinha captado a minha atenção, em jeito provocatório respondi – o Facebook também tem muita coisa que não interessa.

Nesta altura a Amélia já se tinha sentado à minha frente, tinha colocado a mala, também pequenina cuidadosamente no colo e o João afastava-se em direção a uma mesa ao fundo onde estavam a ser servidos águas e refrescos.

Olhei melhor a Amélia, o seu rosto com as rugas normais do tempo, brilhava suavemente de felicidade. Vestia um vestido escuro de verão, salpicado de milhares de pequeninas flores brancas o que lhe aumentava o ar cândido que mantinha apesar da idade.

- Foi no Facebook que voltei a encontrar o meu João e foi lá que a encontrei a si! Agora eu queria saber o resto da história, bastou um – Então? Para a Amélia me contar a sua história.

Ela e o João tinham sido namorados em miúdos, viviam em aldeias próximas e dançavam aos sábados nos bailaricos e viam-se todos os domingos à saída da missa, quis a vida que face às dificuldades financeiras ela e a família abalassem para a Alemanha e assim perdessem o rasto um do outro. Os anos passaram e a Amélia nunca esqueceu o João, mas acreditou que ele já a tinha esquecido e casou. Não foi casamento de amor, mas de conforto, e viveu confortavelmente durante mais de trinta anos, teve um filho e uma filha, trabalhou, cuidou da casa e da família, esqueceu-se de si e viveu para os outros. Os anos foram passando, casou uma filha e fez-lhe um enxoval com tudo, do bom e do melhor, uns anos depois o filho também saiu de casa e a Amélia começou a ter mais tempo livre. De vez em quando ainda se lembrava do João mas rapidamente agarrava no pano do pó ou na esfregona e espanejava para fora essas lembranças, e assim foi vivendo, uma vidinha morna, até que um dia uma doença ruim, em pouco mais de um ano lhe levou o marido e não tenho já nada para se ocupar a Amélia começou finalmente a descobrir que existia.

O João nunca tinha casado, quando soube que a Amélia tinha emigrado para a Alemanha quis ir atrás dela, mas não sabia como a procurar, por isso ainda foi para França, e depois por lá ficou, a maior parte da vida a trabalhar na construção civil. Nunca casou porque nunca esqueceu a Amélia, mas teve um filho e até viveu uns anos com a mãe do rapaz mas depois a Amélia vinha-lhe ao pensamento, e porque os homens também choram, uma ou outra lágrima rolava pelo rosto, só que de seguida agarrava na pá ou no martelo e enxotava a Amélia da cabeça e voltava ao trabalho.

Os anos foram passando e a reforma chegou, a Amélia tinha uma conta no Facebook para saber novidades dos filhos e dos netos, espalhados pelo mundo.

Os anos foram passando e a reforma chegou, o João tinha agora uma conta no Facebook, tinham-lhe dito que ali se encontravam velhos amigos. Um dia o João encontrou a Amélia, e apesar dos anos reconheceu-a de imediato, sentiu novamente o coração a bater fora do peito e pensou – que se lixe se for casada, vou enviar-lhe uma mensagem.

Os olhos da Amélia não queriam acreditar quando viram a primeira mensagem do João, reconheceu-o de imediato. Não era possível que o João, ao fim de tantos anos estivesse à sua procura. Trocaram as primeiras mensagens a medo, depois trocaram números de telefone e combinaram encontra-se em Portugal em breve. Nesse verão puderam de novo abraçar-se e nunca mais se separaram. Em setembro foram primeiro à Alemanha e depois à França, juntaram tudo o que tinham e voltaram para Portugal. Quando se tem mais de setenta anos não se sabe quantos mais anos se tem para viver então todo o tempo é pouco, em meia dúzia de meses foram viver para a casa dele, compraram uma mobília nova, completa, de quarto, e faziam amor apaixonadamente, a querer recuperar anos e anos de solidão.      

A Amélia contava-me a sua história baixinho, de rajada, feliz como uma criança, eu não fiz perguntas, ouvia e pensava para comigo como era possível uma história assim. Depois de ganhar folego a Amélia corou um bocadinho e dizia-me – sabe, não sabia que se podia ser tão feliz! O meu João é muito fogoso, mas não é só isso, ele vive para me fazer feliz e eu tenho de estar à altura, ando a observar, sem ele perceber, o que é que ele gosta mais e só se eu não puder é que eu não faço, o meu João merece tudo! Ele já me levou aos Açores e chegamos a semana passada de Paris, agora anda com ideias de irmos de lua de mel para a Madeira.  

Levantei os olhos à procura do João, que com um copo na mão mantinha uma conversa de circunstância, a uma distância confortável, sempre com os olhos na sua Amélia.

Sorri para a Amélia que me sorriu de volta, perguntei-lhe o que significava ser feliz com mais de setenta anos. Com um ar malandro ela disse-me -Esses miúdos sabem lá o que é fazer amor, quando se tem a vida toda não valorizamos muita coisa, agora quando sabemos que o tempo nos escorre por entre os dedos e que não sabemos quantos mais anos nos restam todos os momentos são únicos e devem ser aproveitados.

Reparei que o João se dirigia para a mesa e ela também deve ter sentido porque levantando a voz disse-me – Não, afinal não coloque Amélia, coloque Amélia e João, hoje à noite, com o seu livro, vamos escolher o sitio da nossa lua de mel.      



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