Teresa Vai com as Outras - Prometo não surpreender
“A fadiga que sentimos não é tanto do trabalho acumulado,
mas de um quotidiano feito de rotina e de vazio. O que mais cansa não é
trabalhar muito. O que mais cansa é viver pouco. O que realmente cansa é viver
sem sonhos”.
Mia Couto
Quando era miúda era um verdadeiro “bicho do mato”, enrolava-me
nas saias da minha mãe mal aparecia alguém desconhecido, já a antever o fatídico
“dá um beijinho a esta tia”, que por norma era sempre uma velha, de pele toda
enrugada e sem dentes na frente. Sim a minha infância foi bem regada com
replicas reais da bruxa má e eu, que até tinha o meu lado de Cinderela, mas não
o sabia, em vez do príncipe encantado, sai-me sempre a tia velha, vestida de
escuro, de olhos pequenos e penetrantes, a avançar para mim de beiças
estendidas.
Um dia a minha mãe desistiu, desistiu de passar vergonhas e
perante os meus olhos gigantes e escuros e pestanudos, abertos de medo de tal
forma que pareciam querer saltar e ganhar vida própria, ela coitada, começou a olhava-me
de cima enquanto encolhia os olhos e dizia a mais uma tia –“ela é assim, é
estranha, não é como os outros…” e desanimada, foi desistindo de me obrigar a
cumprimentar, e eu desanimada acreditava que não ser como os outros era algo terrível.
Quando um dia, uns anos mais tarde, ganhei coragem e disse
em casa que queria ser advogada, ela deu uma gargalhada e disse bem alto – “Tu?
Nunca vais conseguir falar à vontade para ninguém, como é que vais defender os
teus clientes em tribunal? “ e eu que até então tinha passado tantos anos
escondida nas suas saias e por isso não conhecia mais ninguém, acreditei porque
não tinha razão para duvidar.
Durante muitos anos passei muito tempo sozinha, brincava
normalmente debaixo da mesa da sala, com as minhas bonecas e os tachinhos
porque menina tinha de aprender desde cedo as lides da casa e a tratar dos
filhos, porque menina tinha de casar e de dedicar a vida ao marido e aos
filhos.
Mas eu não sonhava com casamento, sonhava que vivia sozinha,
que era dona das minhas escolhas, que trabalhava muito, mas era independente,
que estudava. E um dia o meu pai levou-me a ver os aviões, contou-me nesse dia que
tinha andado a construir a pista onde poisavam e descolavam aqueles aviões, mas
eu não ouvi, aliás, realmente só o ouvi muitos anos mais tarde quando ele
estava quase a morrer, nesse dia ele falou com orgulho do seu contributo para o
desenvolvimento, de como tinha orgulho no seu trabalho mas eu, de olhos
gigantes, escuros e pestanudos, só via mulheres muito elegantes a subir devagar
as escadas do avião, para depois serem engolidas por aquele bicho gigante de
metal e foi possivelmente nesse dia que comecei a sonhar. Enquanto o meu pai
sonhava com o seu trabalho duro na construção da pista dos aviões, eu sonhava
com elegância e independência.
Desse dia em diante nunca mais deixei de sonhar, aquilo
colou-se a mim como uma doença e ia comigo para todo o lado, e foi assim que em
vez de bonecas passei a gostar de passear os livros da Anita, aprendi a ler
comecei a imitar que apresentava o telejornal enquanto lia os jornais, do dia
anterior, que os meus irmãos bem mais velhos levavam para casa. Na escola
primária as minhas composições ganhavam prémios e isso dava-me alento para
continuar a sonhar.
Aos poucos foi-me esquecendo que era um bicho do mato e que
me escondia nas saias da minha mãe, não sei se porque as velhas foram morrendo
ou se porque eu deixei de as ver, mas o que é certo é aos poucos a minha mãe
trocou o – ela é assim estranha, não é como os outros…primeiro pelo silencio e
depois por – Olha lá Zé, é tal e qual a tua mãe…. Para terminar, numa das últimas
vezes que a levei a almoçar fora em que por forças das circunstâncias tive de a
levar a um almoço de empresários, cuja reunião foi conduzida por mim. Quando
chegamos ao carro, ouvi um dos últimos raspanetes, quando liguei o motor e
perguntei, então gostou do almoço? Ela, de olhos cerrados, pequenos e escuros
olhou para mim e disse – Tu sempre me saíste uma grande maria-rapaz, sozinha a
falar para tanto homem!
Hoje acredito que por detrás deste raspanete estava também
bastante orgulho, tal como quando ela me perguntava de eu não tinha medo de ir
para o estrangeiro, tanta vez e sempre sozinha, ou quando me perguntava, antes
de todos termos GPS, como é que eu ia para o Porto, conduzia o carro que a TAP
tinha lá em cima e nunca tinha medo de que me acontecesse alguma coisa.
A fadiga só havia de chegar anos mais tarde, quando a rotina
foi pintando a minha vida de cinzento e eu fui deixando, e aos poucos o cinza
clarinho escureceu, e um dia o cinza já não era cinza era preto e o preto
apagou os sonhos e eu deixei de sonhar só que não sabia, e porque não sabia
nada fazia, e como nada fazia cada dia estava mais escuro e um dia já não havia
dia, só noite e a noite não tinha lua nem estrelas, só um nevoeiro que se
colava à pele e tudo cobria. Foi nesse dia em que eu deixei de sonhar que a fadiga,
o cansaço e a rotina passaram a ser os meus companheiros, foi nessa altura que
estava tão cansada de viver porque vivia sem sonhos só que como tinha perdido a
capacidade de sonhar já não sabia onde queria chegar.
Então um dia acordei e descobri como estava perdida! Nessa
manhã olhei para dentro de mim e vi uma encruzilhada, num caminho via-me a mim
mesma, sozinha numa estrada deserta, de cabeça baixa, pesada, caminhando
devagar sem nada esperar e sem nada querer. No outro caminho não via quase nada,
mas havia muita luz, havia sol, havia flores e arvores e embora um nevoeiro branco
e sedoso estivesse a cobrir o caminho, percebia-se o som de vozes animadas. Foi
no dia que abracei o desconhecido que voltei a sonhar, primeiro devagarinho,
muito a medo, até por agora já não tinha as saias da minha mãe para me esconder,
depois com mais certeza, e finalmente de cabeça bem levantada, e à medida que
foi caminhando os sonhos foram voltando e à medida que os sonhos voltaram eu,
de olhos gigantes, escuros mas já não tão pestanudos, voltei a acreditar.
A Bruxa Má e o Livro de Histórias
“Então ela foi até um quarto secreto e isolado onde ninguém
entrava, nem se sabia que existia e fez uma maçã muito venenosa. Tinha um
aspecto tão bonito por fora, branca com faces vermelhas, que qualquer pessoa
que a visse ia querer comer. Mas qualquer um que comesse um pedacinho ia
morrer. Quando a maçã ficou pronta, ela sujou bem o rosto e se disfarçou de
camponesa. E, mais uma vez, atravessou as sete montanhas até a casa dos sete
anões”.
https://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/branca_de_neve
Os irmãos Grimm escreveram fabulas intemporais, que mais do
que histórias para crianças são avisos para os mais incautos, distraídos ou
crentes, que confiando acabam ter grandes dissabores na vida. Mas esta história
em particular também nos lembra que as mulheres, apesar de continuarem a ser,
muitas vezes, desfavorecidas na sociedade, não de protegem entre si, sendo mais
cruéis umas para as outras do que os homens em relação às mulheres.
Vivi tão intensamente o momento em que assinei a rescisão
com a TAP que quando cheguei a casa sentei-me ao computador, escrevi um texto e
publiquei-o de uma só vez no Facebook. Esse texto viralizou e hoje, passados
mais de quatro anos, posso dizer que foi um texto que mudou totalmente o rumo
da minha vida.
De entre as pessoas que leram o texto uma enviou-me uma
mensagem privada, vamos chamar-lhe Elisa.
Só sabe quem já viveu,
o que é adrenalina de publicar um texto e ficar a acompanhar o impacto nas
redes sociais. A quantidade de likes, de partilhas e as mensagens privadas que
recebemos, de pessoas que não conhecemos, mas que se reveem nas nossas palavras
e querem partilhar essas emoções com o autor ou simplesmente agradecer porque
alguém conseguiu traduzir em palavras, sentimentos profundamente guardados na
alma.
Logo após a publicação do meu texto no Facebook, a Elisa, já
combinamos chamar-lhe assim, enviou-me uma mensagem privada a dizer que tinha
gostado muito do meu texto, através dele tinha chegado ao blog e perguntou-me se
eu já tinha pensado publicar um livro. Li e reli estupefacta a mensagem dela, fui
ao seu perfil e percebi vagamente que estava ligada à edição de livros. O sol
estava já a entrar pela janela da minha alma! Não queria acreditar!
Respondi a verdade, que não, nunca tinha pensado publicar um
livro, e ela devolveu-me a resposta – Tenho uma editora, também publicamos no
Brasil, e gostávamos de publicar um livro com os textos do seu blog.
O meu coração disparou de emoção, nos últimos tempos
tinha-me convencido, ou tinham-me convencido de que o que fazia não tinha assim
tanto valor e eu, de tanto sentir acreditava e nada dizia. Escrevia mais com espírito
de missão do que com convicção, e sentia adrenalina dos likes, das partilhas e
dos convites, mas era como se fosse outra pessoa, porque eu tinha-me convencido
ou tinham-me convencido de que o que fazia não tinha assim tanto valor.
Disse à Elisa que gostava de a conhecer, trocamos números de
telefone, perguntei-lhe onde era a editora e a Elisa marcou encontro no café de
uma grande superfície em Lisboa. A primeira luz de alerta acendeu, mas apagou
logo de seguida.
A Elisa tinha um sorrisinho baixinho, tal como ela que
também era baixinha, e os olhos pequeninos, mas ainda mais pequeninos ficavam
porque ela os baixava. A Elisa explicou-me que embora o valor que eu recebesse por
livro fosse muito reduzido era muito importante publicar um livro e que ele até
podia chegar ao Brasil. Ao Brasil pensei eu, que toda a vida devorei livros de
autores brasileiros, ao Brasil, pensei eu a imaginar o Jorge Amado e a sua
amada, Zélia Gattai, a descansar debaixo das arvores, sentados no quintal da
sua Casa do Rio Vermelho em Salvador da Bahia, ao Brasil…
Acordei dos meus
sonhos com a Elisa a sorrir baixinho e a olhar para mim. Depois de uma pausa
avançou – A Teresa envia-me o seu livro para tratarmos da revisão, da capa, de
tudo e sabe, e ajudava muito se tivesse umas pessoas para escrever o prefácio e
se conseguisse tratar de uns patrocínios.
Saí do centro
comercial mais inspirada do que quando se vive o primeiro grande amor, cheguei
a casa de leve pesquisei sobre a editora, encontrei-a pelo que agarrei no telemóvel
e comecei a fazer telefonemas. Em três dias vários amigos começaram a escrever
os prefácios, outros mobilizaram-se pelos patrocínios e em quinze dias eu até
já tinha onde fazer os lançamentos, o primeiro seria na BTL, no Stand da APAVT
e era dedicado a todos os amigos do turismo, o segundo num bar bastante
badalado de Lisboa e já tinha confirmações de cerca de 30 ou 40 amigos,
bloggers, influencers e jornalistas e o terceiro, dedicado à família seria na
Foz do Arelho.
- Estou, Elisa? Bom dia! Já tenho patrocinadores!
- Estou, Elisa? Bom dia! Toda a gente que convidei para
escrever o prefácio aceitou e agora? – Agora publicamos todos! Respondeu a
Elisa com o seu sorrisinho muito baixinho.
- Estou, Elisa? Bom dia! Como vai a revisão do livro?
-Estou, Elisa? Bom dia! Como vai a capa do livro?
-Estou, Elisa? Bom dia! A data das sessões aproxima-se como está a
publicação do livro?
- Estou, Elisa? Bom dia! Já temos prova da capa? Como está a
revisão do livro?
- Estou a tratar minha querida, estou a tratar, olha, como
tens os patrocinadores, não me envias os contatos deles para fazerem os
pagamentos? Como assim pensei eu? Os contatos dos patrocinadores? Sabem aquele
momento em que a grande paixão revela o seu lado negro? Foi o que eu senti. Um
friozinho desceu-me pela espinha e respondi, - Não Elisa, não te dou os
contatos dos patrocinadores, com eles trato eu.
- Estou, Elisa? Bom dia! Este é o meu deadline para ver as provas,
se não enviares nada fica tudo sem efeito. Conforme disse isto fiquei sem
sangue, afinal só me estava a fazer de forte, o que é que eu ia fazer da minha
vida se a Elisa não enviasse as provas da capa?
No dia anunciado a Elisa, tal como eu esperava, não enviou
nada e neste momento estava a começar a ter muito pouco tempo para…para o que
Meu Deus? Eu sabia lá o que fazer! Nunca tinha pensado em publicar um livro e agora
tinha um monte de textos soltos na mão, os mais lidos do blog Teresa Vai de
Férias, tinha a minha palavra dada aos patrocinadores, o compromisso com os
autores do prefácio e não fazia a mínima ideia do que fazer a seguir. Respirei
fundo e disse a mim mesma, este livro vai acontecer!
Fiz uns telefonemas e percebi que esta editora tinha já queixas,
a sociedade portuguesa de autores aconselhou-me a registar de imediato o conteúdo
do livro no meu nome e explicou-me todos os procedimentos para poder fazer uma
edição de autor. Este foi o primeiro passo que dei e a ajuda que recebi
determinou o sucesso.
Continuei os telefonemas e enviei uma mensagem para a minha
sobrinha Rita, ela tinha experiência de revisão de textos, enviei-lhe o livro pois
ela mora na Bélgica, ela fez a revisão e devolveu-me, oferecendo o serviço. Precisava
de uma capa para o livro, a Inês Vicente que estava ainda a começar os
primeiros passos, fez a capa com um preço muito especial, comecei a respirar,
mas ainda faltava encontrar uma gráfica com um valor dentro do orçamento e que
cumprisse com o prazo por causa dos lançamentos já agendados. Os valores em
Lisboa eram muito altos, lembrei-me de consultar uma gráfica nas Caldas da
Rainha e o negócio ficou logo fechado, quando lhes expliquei o que tinha
acontecido deram-me o valor que eu precisava para fechar o negócio e todo o
apoio necessário para a produção do livro.
A emoção que senti quando abri o envelope com a primeira
prova foi semelhante a chegar à lua, não é que eu já tenha ido à lua, mas tenho
a certeza de que foi semelhante.
Quando começava a acreditar que afinal tudo ia correr bem eis
que as notícias sobre o covid começam a subir de intensidade, o cerco começa a
apertar e cada vez se fala mais em restrições e fecho de espaço aéreo, a BTL é adiada
e depois cancelada e eu sou obrigada a cancelar os outros dois lançamentos do
livro. A Gracal, a gráfica das Caldas da Rainha, fez um trabalho exemplar,
entregou os livros nos patrocinadores e a sua última entrega, antes das
empresas fecharem e de o mundo fechar, sexta-feira dia 13 de março, foram
centenas de livros em minha casa.
Fiquei com um
corredor cheio de caixas e caixas de livros fechadas, o mundo fechado, a minha
empresa que só tinha três semanas fechada, a minha vida fechada, sem fim e sem
paz à vista.
Um conjunto de fatores alienatórios, ou não, impediram-me de
ficar parada, mas isso fica para outra história.
O meu filho mais novo desafiou-me para fazer uns vídeos promocionais
para as redes sociais para poder vender os livros, fizemos os vídeos, fizemos
fotografias e apesar de tudo acabamos por nos divertir. Depois tomei-lhe o
gosto e comecei a fazer diretos do quintal da casa em Lisboa. Estava toda a
gente em casa, sem nada para fazer, com a TV inundada com mortes e drama, e o
livro sobre viagens, o Teresa Vai de Férias, vendeu-se como nunca imaginei, os
pagamentos eram feitos em formato digital e os livros seguiam pelo correio, ao
fim de pouco tempo já me conheciam no posto dos correios e acabei por fazer amizade
com o chefe do posto, uma vez que quase diariamente ia lá enviar sonhos de
vidas normais em formato de livro, em envelopes de papel pardo com um lacinho
cor de rosa, pequenas doses de felicidade em forma de viagens, que ajudaram a
levar esperança e sonhos numa época tão atroz para tantos de nós.
Os livros venderam-se todos, espalharam-se pelo país e
alguns voaram para outros lugares. As pessoas felizes com a normalidade mesmo
que temporária, tiravam fotografias e partilhavam estes pequenos momentos de
felicidade nas redes sociais e eu via e sorria.
Afinal não são só os contos dos irmãos Grimm que acabam bem,
na vida real nem sempre a historia acaba com o “foram felizes para sempre” mas neste
caso bastou-me “ ela conseguiu faze-los voltar a acreditar”.
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