Teresa Vai com as Outras - Prometo não surpreender

 

Imagem retirada da net
Andréa Marques https://br.pinterest.com/pin/675680750358623989


“A fadiga que sentimos não é tanto do trabalho acumulado, mas de um quotidiano feito de rotina e de vazio. O que mais cansa não é trabalhar muito. O que mais cansa é viver pouco. O que realmente cansa é viver sem sonhos”.

Mia Couto

 

Quando era miúda era um verdadeiro “bicho do mato”, enrolava-me nas saias da minha mãe mal aparecia alguém desconhecido, já a antever o fatídico “dá um beijinho a esta tia”, que por norma era sempre uma velha, de pele toda enrugada e sem dentes na frente. Sim a minha infância foi bem regada com replicas reais da bruxa má e eu, que até tinha o meu lado de Cinderela, mas não o sabia, em vez do príncipe encantado, sai-me sempre a tia velha, vestida de escuro, de olhos pequenos e penetrantes, a avançar para mim de beiças estendidas.

Um dia a minha mãe desistiu, desistiu de passar vergonhas e perante os meus olhos gigantes e escuros e pestanudos, abertos de medo de tal forma que pareciam querer saltar e ganhar vida própria, ela coitada, começou a olhava-me de cima enquanto encolhia os olhos e dizia a mais uma tia –“ela é assim, é estranha, não é como os outros…” e desanimada, foi desistindo de me obrigar a cumprimentar, e eu desanimada acreditava que não ser como os outros era algo terrível.

Quando um dia, uns anos mais tarde, ganhei coragem e disse em casa que queria ser advogada, ela deu uma gargalhada e disse bem alto – “Tu? Nunca vais conseguir falar à vontade para ninguém, como é que vais defender os teus clientes em tribunal? “ e eu que até então tinha passado tantos anos escondida nas suas saias e por isso não conhecia mais ninguém, acreditei porque não tinha razão para duvidar.

Durante muitos anos passei muito tempo sozinha, brincava normalmente debaixo da mesa da sala, com as minhas bonecas e os tachinhos porque menina tinha de aprender desde cedo as lides da casa e a tratar dos filhos, porque menina tinha de casar e de dedicar a vida ao marido e aos filhos.    

Mas eu não sonhava com casamento, sonhava que vivia sozinha, que era dona das minhas escolhas, que trabalhava muito, mas era independente, que estudava. E um dia o meu pai levou-me a ver os aviões, contou-me nesse dia que tinha andado a construir a pista onde poisavam e descolavam aqueles aviões, mas eu não ouvi, aliás, realmente só o ouvi muitos anos mais tarde quando ele estava quase a morrer, nesse dia ele falou com orgulho do seu contributo para o desenvolvimento, de como tinha orgulho no seu trabalho mas eu, de olhos gigantes, escuros e pestanudos, só via mulheres muito elegantes a subir devagar as escadas do avião, para depois serem engolidas por aquele bicho gigante de metal e foi possivelmente nesse dia que comecei a sonhar. Enquanto o meu pai sonhava com o seu trabalho duro na construção da pista dos aviões, eu sonhava com elegância e independência.

Desse dia em diante nunca mais deixei de sonhar, aquilo colou-se a mim como uma doença e ia comigo para todo o lado, e foi assim que em vez de bonecas passei a gostar de passear os livros da Anita, aprendi a ler comecei a imitar que apresentava o telejornal enquanto lia os jornais, do dia anterior, que os meus irmãos bem mais velhos levavam para casa. Na escola primária as minhas composições ganhavam prémios e isso dava-me alento para continuar a sonhar.

Aos poucos foi-me esquecendo que era um bicho do mato e que me escondia nas saias da minha mãe, não sei se porque as velhas foram morrendo ou se porque eu deixei de as ver, mas o que é certo é aos poucos a minha mãe trocou o – ela é assim estranha, não é como os outros…primeiro pelo silencio e depois por – Olha lá Zé, é tal e qual a tua mãe…. Para terminar, numa das últimas vezes que a levei a almoçar fora em que por forças das circunstâncias tive de a levar a um almoço de empresários, cuja reunião foi conduzida por mim. Quando chegamos ao carro, ouvi um dos últimos raspanetes, quando liguei o motor e perguntei, então gostou do almoço? Ela, de olhos cerrados, pequenos e escuros olhou para mim e disse – Tu sempre me saíste uma grande maria-rapaz, sozinha a falar para tanto homem!

Hoje acredito que por detrás deste raspanete estava também bastante orgulho, tal como quando ela me perguntava de eu não tinha medo de ir para o estrangeiro, tanta vez e sempre sozinha, ou quando me perguntava, antes de todos termos GPS, como é que eu ia para o Porto, conduzia o carro que a TAP tinha lá em cima e nunca tinha medo de que me acontecesse alguma coisa.

A fadiga só havia de chegar anos mais tarde, quando a rotina foi pintando a minha vida de cinzento e eu fui deixando, e aos poucos o cinza clarinho escureceu, e um dia o cinza já não era cinza era preto e o preto apagou os sonhos e eu deixei de sonhar só que não sabia, e porque não sabia nada fazia, e como nada fazia cada dia estava mais escuro e um dia já não havia dia, só noite e a noite não tinha lua nem estrelas, só um nevoeiro que se colava à pele e tudo cobria. Foi nesse dia em que eu deixei de sonhar que a fadiga, o cansaço e a rotina passaram a ser os meus companheiros, foi nessa altura que estava tão cansada de viver porque vivia sem sonhos só que como tinha perdido a capacidade de sonhar já não sabia onde queria chegar.     

Então um dia acordei e descobri como estava perdida! Nessa manhã olhei para dentro de mim e vi uma encruzilhada, num caminho via-me a mim mesma, sozinha numa estrada deserta, de cabeça baixa, pesada, caminhando devagar sem nada esperar e sem nada querer. No outro caminho não via quase nada, mas havia muita luz, havia sol, havia flores e arvores e embora um nevoeiro branco e sedoso estivesse a cobrir o caminho, percebia-se o som de vozes animadas. Foi no dia que abracei o desconhecido que voltei a sonhar, primeiro devagarinho, muito a medo, até por agora já não tinha as saias da minha mãe para me esconder, depois com mais certeza, e finalmente de cabeça bem levantada, e à medida que foi caminhando os sonhos foram voltando e à medida que os sonhos voltaram eu, de olhos gigantes, escuros mas já não tão pestanudos, voltei a acreditar.                

      

A Bruxa Má e o Livro de Histórias



“Então ela foi até um quarto secreto e isolado onde ninguém entrava, nem se sabia que existia e fez uma maçã muito venenosa. Tinha um aspecto tão bonito por fora, branca com faces vermelhas, que qualquer pessoa que a visse ia querer comer. Mas qualquer um que comesse um pedacinho ia morrer. Quando a maçã ficou pronta, ela sujou bem o rosto e se disfarçou de camponesa. E, mais uma vez, atravessou as sete montanhas até a casa dos sete anões”.

https://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/branca_de_neve

 

Os irmãos Grimm escreveram fabulas intemporais, que mais do que histórias para crianças são avisos para os mais incautos, distraídos ou crentes, que confiando acabam ter grandes dissabores na vida. Mas esta história em particular também nos lembra que as mulheres, apesar de continuarem a ser, muitas vezes, desfavorecidas na sociedade, não de protegem entre si, sendo mais cruéis umas para as outras do que os homens em relação às mulheres.

Vivi tão intensamente o momento em que assinei a rescisão com a TAP que quando cheguei a casa sentei-me ao computador, escrevi um texto e publiquei-o de uma só vez no Facebook. Esse texto viralizou e hoje, passados mais de quatro anos, posso dizer que foi um texto que mudou totalmente o rumo da minha vida.

De entre as pessoas que leram o texto uma enviou-me uma mensagem privada, vamos chamar-lhe Elisa.

 Só sabe quem já viveu, o que é adrenalina de publicar um texto e ficar a acompanhar o impacto nas redes sociais. A quantidade de likes, de partilhas e as mensagens privadas que recebemos, de pessoas que não conhecemos, mas que se reveem nas nossas palavras e querem partilhar essas emoções com o autor ou simplesmente agradecer porque alguém conseguiu traduzir em palavras, sentimentos profundamente guardados na alma.

Logo após a publicação do meu texto no Facebook, a Elisa, já combinamos chamar-lhe assim, enviou-me uma mensagem privada a dizer que tinha gostado muito do meu texto, através dele tinha chegado ao blog e perguntou-me se eu já tinha pensado publicar um livro. Li e reli estupefacta a mensagem dela, fui ao seu perfil e percebi vagamente que estava ligada à edição de livros. O sol estava já a entrar pela janela da minha alma! Não queria acreditar!

Respondi a verdade, que não, nunca tinha pensado publicar um livro, e ela devolveu-me a resposta – Tenho uma editora, também publicamos no Brasil, e gostávamos de publicar um livro com os textos do seu blog.

O meu coração disparou de emoção, nos últimos tempos tinha-me convencido, ou tinham-me convencido de que o que fazia não tinha assim tanto valor e eu, de tanto sentir acreditava e nada dizia. Escrevia mais com espírito de missão do que com convicção, e sentia adrenalina dos likes, das partilhas e dos convites, mas era como se fosse outra pessoa, porque eu tinha-me convencido ou tinham-me convencido de que o que fazia não tinha assim tanto valor.

Disse à Elisa que gostava de a conhecer, trocamos números de telefone, perguntei-lhe onde era a editora e a Elisa marcou encontro no café de uma grande superfície em Lisboa. A primeira luz de alerta acendeu, mas apagou logo de seguida.

A Elisa tinha um sorrisinho baixinho, tal como ela que também era baixinha, e os olhos pequeninos, mas ainda mais pequeninos ficavam porque ela os baixava. A Elisa explicou-me que embora o valor que eu recebesse por livro fosse muito reduzido era muito importante publicar um livro e que ele até podia chegar ao Brasil. Ao Brasil pensei eu, que toda a vida devorei livros de autores brasileiros, ao Brasil, pensei eu a imaginar o Jorge Amado e a sua amada, Zélia Gattai, a descansar debaixo das arvores, sentados no quintal da sua Casa do Rio Vermelho em Salvador da Bahia, ao Brasil…

 Acordei dos meus sonhos com a Elisa a sorrir baixinho e a olhar para mim. Depois de uma pausa avançou – A Teresa envia-me o seu livro para tratarmos da revisão, da capa, de tudo e sabe, e ajudava muito se tivesse umas pessoas para escrever o prefácio e se conseguisse tratar de uns patrocínios.

 Saí do centro comercial mais inspirada do que quando se vive o primeiro grande amor, cheguei a casa de leve pesquisei sobre a editora, encontrei-a pelo que agarrei no telemóvel e comecei a fazer telefonemas. Em três dias vários amigos começaram a escrever os prefácios, outros mobilizaram-se pelos patrocínios e em quinze dias eu até já tinha onde fazer os lançamentos, o primeiro seria na BTL, no Stand da APAVT e era dedicado a todos os amigos do turismo, o segundo num bar bastante badalado de Lisboa e já tinha confirmações de cerca de 30 ou 40 amigos, bloggers, influencers e jornalistas e o terceiro, dedicado à família seria na Foz do Arelho.

- Estou, Elisa? Bom dia! Já tenho patrocinadores!

- Estou, Elisa? Bom dia! Toda a gente que convidei para escrever o prefácio aceitou e agora? – Agora publicamos todos! Respondeu a Elisa com o seu sorrisinho muito baixinho.

- Estou, Elisa? Bom dia! Como vai a revisão do livro?

-Estou, Elisa? Bom dia! Como vai a capa do livro?

-Estou, Elisa? Bom dia!  A data das sessões aproxima-se como está a publicação do livro?

- Estou, Elisa? Bom dia! Já temos prova da capa? Como está a revisão do livro?

- Estou a tratar minha querida, estou a tratar, olha, como tens os patrocinadores, não me envias os contatos deles para fazerem os pagamentos? Como assim pensei eu? Os contatos dos patrocinadores? Sabem aquele momento em que a grande paixão revela o seu lado negro? Foi o que eu senti. Um friozinho desceu-me pela espinha e respondi, - Não Elisa, não te dou os contatos dos patrocinadores, com eles trato eu.

- Estou, Elisa? Bom dia! Este é o meu deadline para ver as provas, se não enviares nada fica tudo sem efeito. Conforme disse isto fiquei sem sangue, afinal só me estava a fazer de forte, o que é que eu ia fazer da minha vida se a Elisa não enviasse as provas da capa?

No dia anunciado a Elisa, tal como eu esperava, não enviou nada e neste momento estava a começar a ter muito pouco tempo para…para o que Meu Deus? Eu sabia lá o que fazer! Nunca tinha pensado em publicar um livro e agora tinha um monte de textos soltos na mão, os mais lidos do blog Teresa Vai de Férias, tinha a minha palavra dada aos patrocinadores, o compromisso com os autores do prefácio e não fazia a mínima ideia do que fazer a seguir. Respirei fundo e disse a mim mesma, este livro vai acontecer!

Fiz uns telefonemas e percebi que esta editora tinha já queixas, a sociedade portuguesa de autores aconselhou-me a registar de imediato o conteúdo do livro no meu nome e explicou-me todos os procedimentos para poder fazer uma edição de autor. Este foi o primeiro passo que dei e a ajuda que recebi determinou o sucesso.

Continuei os telefonemas e enviei uma mensagem para a minha sobrinha Rita, ela tinha experiência de revisão de textos, enviei-lhe o livro pois ela mora na Bélgica, ela fez a revisão e devolveu-me, oferecendo o serviço. Precisava de uma capa para o livro, a Inês Vicente que estava ainda a começar os primeiros passos, fez a capa com um preço muito especial, comecei a respirar, mas ainda faltava encontrar uma gráfica com um valor dentro do orçamento e que cumprisse com o prazo por causa dos lançamentos já agendados. Os valores em Lisboa eram muito altos, lembrei-me de consultar uma gráfica nas Caldas da Rainha e o negócio ficou logo fechado, quando lhes expliquei o que tinha acontecido deram-me o valor que eu precisava para fechar o negócio e todo o apoio necessário para a produção do livro.

A emoção que senti quando abri o envelope com a primeira prova foi semelhante a chegar à lua, não é que eu já tenha ido à lua, mas tenho a certeza de que foi semelhante.

Quando começava a acreditar que afinal tudo ia correr bem eis que as notícias sobre o covid começam a subir de intensidade, o cerco começa a apertar e cada vez se fala mais em restrições e fecho de espaço aéreo, a BTL é adiada e depois cancelada e eu sou obrigada a cancelar os outros dois lançamentos do livro. A Gracal, a gráfica das Caldas da Rainha, fez um trabalho exemplar, entregou os livros nos patrocinadores e a sua última entrega, antes das empresas fecharem e de o mundo fechar, sexta-feira dia 13 de março, foram centenas de livros em minha casa.

 Fiquei com um corredor cheio de caixas e caixas de livros fechadas, o mundo fechado, a minha empresa que só tinha três semanas fechada, a minha vida fechada, sem fim e sem paz à vista.

Um conjunto de fatores alienatórios, ou não, impediram-me de ficar parada, mas isso fica para outra história.

O meu filho mais novo desafiou-me para fazer uns vídeos promocionais para as redes sociais para poder vender os livros, fizemos os vídeos, fizemos fotografias e apesar de tudo acabamos por nos divertir. Depois tomei-lhe o gosto e comecei a fazer diretos do quintal da casa em Lisboa. Estava toda a gente em casa, sem nada para fazer, com a TV inundada com mortes e drama, e o livro sobre viagens, o Teresa Vai de Férias, vendeu-se como nunca imaginei, os pagamentos eram feitos em formato digital e os livros seguiam pelo correio, ao fim de pouco tempo já me conheciam no posto dos correios e acabei por fazer amizade com o chefe do posto, uma vez que quase diariamente ia lá enviar sonhos de vidas normais em formato de livro, em envelopes de papel pardo com um lacinho cor de rosa, pequenas doses de felicidade em forma de viagens, que ajudaram a levar esperança e sonhos numa época tão atroz para tantos de nós.   

Os livros venderam-se todos, espalharam-se pelo país e alguns voaram para outros lugares. As pessoas felizes com a normalidade mesmo que temporária, tiravam fotografias e partilhavam estes pequenos momentos de felicidade nas redes sociais e eu via e sorria.

Afinal não são só os contos dos irmãos Grimm que acabam bem, na vida real nem sempre a historia acaba com o “foram felizes para sempre” mas neste caso bastou-me “ ela conseguiu faze-los voltar a acreditar”.   


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