Teresa Vai com as Outras - O Deus de Todas as Coisas

 


“Ela dançou para ele. Naquele pedaço de terra em-forma-de-barco. Viveu.

Ele encostou-a a si, repousando as suas costas na mangueira, enquanto ela chorava e ria ao mesmo tempo. Então, durante o que pareceu uma eternidade, mas realmente não passou de cinco minutos, ela dormiu apoiada nele, as costas dela contra o peito dele(…).

Ela acordou ao som do coração dele batendo contra o seu peito (…). Os braços dele continuavam a abraçá-la e ela sentia o movimento dos seus músculos enquanto as mãos brincavam com uma fronda seca de palmeira”.

Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas

 

Era só mais uma sessão de autógrafos pensava eu sentada a uma secretária, numa sala onde repetia o que fiz tanta vez nos últimos tempos e que nunca imaginei ser possível. Estava a autografar o meu primeiro livro, num espaço composto de pessoas que deambulavam e conversavam animadamente entre si. Às vezes ainda sinto vontade de me beliscar, parece-me que vivo um sonho, o meu primeiro livro, uma edição independente depois de ter sido quase vítima de uma fraude, mas essa história fica para outra altura.

Era só mais uma sessão de autógrafos, normalmente as mulheres são quem mais me procura. Tenho o hábito de as fixar no olhar antes de lhes dedicar um pequeno texto enquanto lhe pergunto o nome, e quando entrego o livro devolvo com um sorriso e volto a olhar nos olhos.

Levantei os olhos vi um uma mulher dos seus setenta anos, fininha, cerca de 1,60m, cabelo grisalho, um pouco acima dos ombros, cuidadosamente arranjado, uns olhos pequeninos que se cerravam ainda mais com um grande sorriso, bonito e transparente que se via vinha do fundo da alma, e um pouco atrás, um homem alto, pela mesma idade, com um ar tranquilo, que olhava para as duas sem nada dizer. Observei curiosa, na minha frente estava um casal feliz.

- Boa tarde, disse – Qual o nome que devo colocar no livro?

-Amélia, foi a resposta.

Baixei os olhos e concentrei-me na dedicatória, normalmente aproveito o que observo para personalizar o texto, pensei uns segundos que fazia sentido escrever sobre felicidade quando a Amélia me interrompeu para me dizer, - Sabe, viemos de propósito de Alcobaça para lhe pedir este autografo. Parei e percebi, a Amélia tinha uma história para partilhar.  Levantei em definitivo os olhos do livro semiaberto e devolvi o mesmo sorriso e ela completou – Eu e o meu João viemos de propósito de Alcobaça, sabe encontrei as suas histórias sobre viagens no Facebook, muito coisa boa já me aconteceu no Facebook. Agora a Amélia tinha captado a minha atenção, em jeito provocatório respondi – o Facebook também tem muita coisa que não interessa.

Nesta altura a Amélia já se tinha sentado à minha frente, tinha colocado a mala, também pequenina cuidadosamente no colo e o João afastava-se em direção a uma mesa ao fundo onde estavam a ser servidos águas e refrescos.

Olhei melhor a Amélia, o seu rosto com as rugas normais do tempo, brilhava suavemente de felicidade. Vestia um vestido escuro de verão, salpicado de milhares de pequeninas flores brancas o que lhe aumentava o ar cândido que mantinha apesar da idade.

- Foi no Facebook que voltei a encontrar o meu João e foi lá que a encontrei a si! Agora eu queria saber o resto da história, bastou um – Então? Para a Amélia me contar a sua história.

Ela e o João tinham sido namorados em miúdos, viviam em aldeias próximas e dançavam aos sábados nos bailaricos e viam-se todos os domingos à saída da missa, quis a vida que face às dificuldades financeiras ela e a família abalassem para a Alemanha e assim perdessem o rasto um do outro. Os anos passaram e a Amélia nunca esqueceu o João, mas acreditou que ele já a tinha esquecido e casou. Não foi casamento de amor, mas de conforto, e viveu confortavelmente durante mais de trinta anos, teve um filho e uma filha, trabalhou, cuidou da casa e da família, esqueceu-se de si e viveu para os outros. Os anos foram passando, casou uma filha e fez-lhe um enxoval com tudo, do bom e do melhor, uns anos depois o filho também saiu de casa e a Amélia começou a ter mais tempo livre. De vez em quando ainda se lembrava do João mas rapidamente agarrava no pano do pó ou na esfregona e espanejava para fora essas lembranças, e assim foi vivendo, uma vidinha morna, até que um dia uma doença ruim, em pouco mais de um ano lhe levou o marido e não tenho já nada para se ocupar a Amélia começou finalmente a descobrir que existia.

O João nunca tinha casado, quando soube que a Amélia tinha emigrado para a Alemanha quis ir atrás dela, mas não sabia como a procurar, por isso ainda foi para França, e depois por lá ficou, a maior parte da vida a trabalhar na construção civil. Nunca casou porque nunca esqueceu a Amélia, mas teve um filho e até viveu uns anos com a mãe do rapaz mas depois a Amélia vinha-lhe ao pensamento, e porque os homens também choram, uma ou outra lágrima rolava pelo rosto, só que de seguida agarrava na pá ou no martelo e enxotava a Amélia da cabeça e voltava ao trabalho.

Os anos foram passando e a reforma chegou, a Amélia tinha uma conta no Facebook para saber novidades dos filhos e dos netos, espalhados pelo mundo.

Os anos foram passando e a reforma chegou, o João tinha agora uma conta no Facebook, tinham-lhe dito que ali se encontravam velhos amigos. Um dia o João encontrou a Amélia, e apesar dos anos reconheceu-a de imediato, sentiu novamente o coração a bater fora do peito e pensou – que se lixe se for casada, vou enviar-lhe uma mensagem.

Os olhos da Amélia não queriam acreditar quando viram a primeira mensagem do João, reconheceu-o de imediato. Não era possível que o João, ao fim de tantos anos estivesse à sua procura. Trocaram as primeiras mensagens a medo, depois trocaram números de telefone e combinaram encontra-se em Portugal em breve. Nesse verão puderam de novo abraçar-se e nunca mais se separaram. Em setembro foram primeiro à Alemanha e depois à França, juntaram tudo o que tinham e voltaram para Portugal. Quando se tem mais de setenta anos não se sabe quantos mais anos se tem para viver então todo o tempo é pouco, em meia dúzia de meses foram viver para a casa dele, compraram uma mobília nova, completa, de quarto, e faziam amor apaixonadamente, a querer recuperar anos e anos de solidão.      

A Amélia contava-me a sua história baixinho, de rajada, feliz como uma criança, eu não fiz perguntas, ouvia e pensava para comigo como era possível uma história assim. Depois de ganhar folego a Amélia corou um bocadinho e dizia-me – sabe, não sabia que se podia ser tão feliz! O meu João é muito fogoso, mas não é só isso, ele vive para me fazer feliz e eu tenho de estar à altura, ando a observar, sem ele perceber, o que é que ele gosta mais e só se eu não puder é que eu não faço, o meu João merece tudo! Ele já me levou aos Açores e chegamos a semana passada de Paris, agora anda com ideias de irmos de lua de mel para a Madeira.  

Levantei os olhos à procura do João, que com um copo na mão mantinha uma conversa de circunstância, a uma distância confortável, sempre com os olhos na sua Amélia.

Sorri para a Amélia que me sorriu de volta, perguntei-lhe o que significava ser feliz com mais de setenta anos. Com um ar malandro ela disse-me -Esses miúdos sabem lá o que é fazer amor, quando se tem a vida toda não valorizamos muita coisa, agora quando sabemos que o tempo nos escorre por entre os dedos e que não sabemos quantos mais anos nos restam todos os momentos são únicos e devem ser aproveitados.

Reparei que o João se dirigia para a mesa e ela também deve ter sentido porque levantando a voz disse-me – Não, afinal não coloque Amélia, coloque Amélia e João, hoje à noite, com o seu livro, vamos escolher o sitio da nossa lua de mel.      


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