A última noite do S.S. Roumania na Foz do Arelho

 

Foto de Miguel Castro/ Pedro Ramalhete


Acabei de colocar mais um tronco de madeira na lareira que crepita animadamente. Regresso ao sofá e fixo o olhar no copo de aguardente velha enquanto sinto o frio que vem do chão de mosaico, e que me arrefece ligeiramente os pés e aprecio o calor que vem da lareira, e que me aquece generosamente a face.

Afasto o olhar e começo a pensar que faz hoje muitos anos que, numa noite fria, escura e chuvosa, os gritos das mulheres e crianças ecoaram pela praia e ficaram para sempre perdidos na noite que embala as ondas bravas do mar da Foz.

Era talvez 1h00 da madrugada quando, em 1892, um trágico naufrágio haveria de ditar o fim de muitos sonhos, interromper muitas vidas e levar para sempre rostos e histórias, espalhando um manto de esquecimento sobre as suas almas.

O S.S. Roumania tinha saído de Glasgow, em Inglaterra, no dia 19 de outubro em direção a Liverpool onde embarcou carga e passageiros. Deixou Liverpool com destino a Bombaim dia 22, à meia noite. A bordo há registos de que seguiam 46 passageiros, dos quais 3 eram crianças e 5 bebés com menos de 3 anos, 18 tripulantes europeus e 50 Lascares, que eram embarcadiços indianos que prestava serviço nos navios ocidentais.

O navio havia saído dos estaleiros de D. & W. Henderson, em Glasgow, em dezembro de 1880 e era bastante avançado para a época com motores de 480 C.V atingindo uma velocidade de 24 nós ou 44,448 km.

Nessa fatídica noite, escura como as noites mais escuras, a morte espreitou o navio e lançou uma forte tempestade sobre ele. Seja por causa do destino, ou porque não estivessem visíveis os faróis das Berlengas e do Cabo Carvoeiro, o que é certo é que nunca será possível conhecer os motivos que fizeram com que o navio, com 110 m de comprimento, se desviasse da sua rota levando-o para o seu naufrágio junto ao “Gronho”, na Foz do Arelho, ali, tão perto da terra e da salvação, tendo arrastado consigo para a morte quase todos os que seguiam a bordo, só se tendo salvado 7 lascares e 2 membros da tripulação.

Dos registos que restam, o que é possível de apurar é que nessa noite o S.S. Roumania se afastou da sua rota cerca de 20 milhas. Um pequeno estremeção alertou alguns para o facto de nem tudo estar bem, o navio tinha tocado na areia, num lugar um pouco a sul da Foz do Arelho. O medo instalou-se quando poucos segundos depois os motores pararam e o barco encalhou, parece que antes disso terá batido em rochedos, o que provocou rombos no barco, que começou de imediato a meter grandes quantidades de água, acabando por se partir pela força das ondas. Quanto tempo demorou até o silencio da morte se instalar na praia já ninguém sabe, mas os registos daqueles que sobreviveram fazem com que seja fácil de imaginarmos os últimos momentos das suas vidas, o desespero, a impotência e depois, novamente, o silêncio….

   

 Nem todos os que andam no mar nasceram para o navegar. Recém-casado, o Capitão Hamilton aceitou as regras que o impediam de partilhar a cabine com a sua jovem esposa. George Dashwood Hamilton de 32 anos tinha viajado para Inglaterra para casar com Frances Maud Bellingham-Smith. Regressava agora a casa e cumpria com as regras a bordo por isso partilhava a cabine com o tenente Rooke. Nessa noite, enquanto pensava na vida que o esperava na India e no amor que sentia pela sua bela mulher, sorria apesar de não a puder ter nos braços, perdido no desejo de voltar a sentir o seu corpo vibrante de emoção. Pensava na grande aventura que estavam a iniciar, certos de que os esperava uma vida feliz e plena de alegria, já quase que podia ver os rostos alegres dos filhos que ainda estavam por conceber quando o tenente Rooke entrou, acordando-o dos seus pensamentos, e começou a tirar a roupa. Foi nessa altura que o navio tocou no fundo, perplexo o Capitão Hamilton levantou-se e sentiu que o mundo lhe fugia quando o navio bateu novamente no fundo, seguido do silencio avassalador dos motores que se silenciavam para sempre. Era urgente perceber o que se estava a passar, mas quando correu para a passagem, o caminho estava já repleto de uma imensidão de passageiros. Respirou de alívio quando viu a sua mulher. estendeu-lhe a mão e conduziu-a primeiro para a escada do convés, que dava ligação para a ponte levando-a sempre consigo até à meia-nau. A chuva miudinha que caia molhava-lhes as faces e colava a pouca roupa ao corpo. Um arrepio de frio percorreu-os em simultâneo enquanto se olhavam nos olhos.  Ali nada mais havia pelo que o caminho para a ré foi feito a correr, enquanto o mar, tocado pelo vento, agitava fortemente o navio. No salão, que alguns passageiros escolheram para se refugiar, a claraboia partiu-se ruidosamente espalhando vidros por todo o lado.

Era evidente que a situação era dramática e Frances Maud perguntou pelos cintos de salvação, ele foi a três cabines e não conseguiu encontrar nenhum, levou-lhe um impermeável que encontrou pelo caminho, e na ânsia de lhe aliviar o frio envolveu-a carinhosamente, foi nessa altura que um terceiro oficial deu instruções para que todos ficassem em baixo. Momentos depois a água começou a apagar, aos poucos todas as luzes até que no final também a lâmpada solitária se apagou e a escuridão, avassaladora, tomou conta de todos os cantos, de todo o espaço, de tudo, trazendo no seu regaço a morte. Nessa altura ondas enormes batiam nas paredes da cabina, e os gritos desesperados das mulheres e das crianças ecoavam na noite sombria. Quando as luzes se apagaram todas o silencio invadiu todas as almas e depois, uma pancada violenta na cabeça e o choque fizeram com que o Capitão Hamilton tivesse perdido os sentidos, acordando atordoado, a flutuar na água gelada, fora do navio, lutando pela vida. Para conseguir nadar mais facilmente tirou as roupas, tendo acabado por ser levado por uma onda para a praia.

A tristeza havia de ocupar durante muito tempo a sua vida, e só 7 anos mais tarde, já com 39 anos, é que voltaria a casar, nunca esquecendo, até ao final dos seus dias, esta noite tinha levado consigo todos os seus sonhos.  

 

 

Habituado a adversidades, o Tenente Rooke era Militar do 5.º Regimento de Cavalaria de Bombaim. Não sabia bem porque, e tentava não prestar muita atenção  mas havia algo que o deixava preocupado nesta viagem e apesar de saber que ainda os esperava muitos dias no mar, queria mais do que nunca chegar à India, e voltar a sentir o cheiro a especiarias no ar e ser embalado pelas noites quentes daquele que era o seu país e onde tinha toda a sua vida. Desde a partida que não tinham apanhado bom tempo, sempre ventos fortes de proa e muita chuva e depois da borrasca que se abatera sobre o navio o que mais queria, pensava enquanto se despia na sua cabine mal prestando atenção ao Capitão Hamilton, era dormir e esperar que o novo dia viesse com muito sol. Foi nessa altura que sentiu o navio bater e vestindo o roupão saiu para ver qual era o problema. Pelo caminho, todas as mulheres saíam das suas cabines, preocupadas com o que estava a acontecer e de nada adiantou o tempo passado a tentar acalmá-las porque elas estavam irredutíveis e recusavam-se a regressar aos quartos sem saber exatamente o que se passava. Foi nessa altura que, porque não falar com a ponte de comando, que foi até ao convés. Horrorizado viu as vagas gigantescas que pareciam querer engolir todo o navio, quebrando-se violentamente no ar, logo por cima das suas cabeças, despedaçando perante o seu olhar incrédulo a ponte de passagem para a coberta superior. Por ali já não havia caminho pelo que a alternativa foi descer até ao convés principal, e de um salto alcançar a coberta superior.

Nessa altura sobre a ponte estava o Capitão, ainda de pijama, e segundos foi arrastado borda fora e logo de seguida a ponte foi destruída pela força das águas, no meio da confusão, alguns lascarins gemiam de medo deitados no convés. Olhando para o lado, a chuva que tinha aliviado bem como a neblina, permitiam ver a praia que estava ali tão perto o que trazia uma esperança de salvação. Não tendo ouvido nenhuma ordem a bordo, resolveu voltar às cabinas para informar que o navio não ia com certeza aguentar, mas que seria possível, se cada um desse o seu melhor, chegar a terra. Pelo caminho uma onda imensa havia do atirar ao mar e arrastar até o deixar na praia, depois a escuridão apanhou-lhe o pensamento e quando despertou não conseguiu avistar nenhum vestígio do barco. Vagueou perdido, ainda em choque, sem perceber bem o que se tinha acontecido, quando encontrou alguns Lascarins, que tal como ele haviam sobrevivido quase que por milagre. Ao amanhecer encontraram o capitão Hamilton e outro Lascarim e foram estes os sobreviventes deste naufrágio.

Já mais refeito percebeu que não tinha havido mais sobreviventes porque não tinha sido possível encontrar os cintos de salvação e porque a indicação para ficarem nas cabines, onde haviam sido violentamente atirados de um lado para o outro no meio da escuridão, lhe tinha retirado todas as forças e toda a esperança de se poderem salvar. Ou poucos que tentaram saltar do navio para nadar para terra haviam sido violentamente atirados contra o navio, perdendo os sentidos e afogando-se de seguida.

 

No S.S. Roumania as regras eram rigorosas e as mulheres só podiam partilhar a cabine com outras mulheres. Os risos e a partilha do espaço criava aos poucos uma cumplicidade que tornava a viagem mais leve e era comum, quando tinham algum tempo livre, as mulheres aproveitarem o tempo para conversarem e para se conhecerem melhor. O destino juntou na mesma cabine a jovem Mrs. Hamilton, recém-casada e que mal podia esperar para chegar à India e começar uma vida nova longe da poluição e da confusão de Inglaterra, Mrs. Beatty, casada com um missionário da Igreja Presbiteriana Irlandesa na Índia, que ia ter com o seu marido mas que não se conseguia conformar com a ideia de ter deixado os seus sete filhos na Irlanda, entregues a familiares, e ainda a Doutora MacGeorge, médica e missionária da mesma Igreja e que regressava após um período de férias na Irlanda.

Muitas outras vidas se cruzaram pela ultima vez a bordo deste navio, como o tenente Charles  Sandford que tinha casado em junho com a sua prima, Miss Westmacott e que regressava à India e Nichol, com 23 anos, que tinha comprado inicialmente uma viagem no navio Algeria, tendo depois mudado de ideias e comprado viagem a bordo do Roumania.

A tragédia haveria ainda de ser mais profunda, como se tal ainda fosse possível. Ao longo dos dias seguintes alguns corpos foram dando à costa. Com recursos tão escassos, os corpos foram fotografados antes de serem enterrados para permitir o seu reconhecimento posterior e existem até aos dias de hoje, no Museu Municipal de Peniche, algumas campas de alguns dos que perderam a vida nessa noite trágica.

Os dias que se seguiram foram difíceis, os despojos do navio, parte da sua carga e muitos cadáveres espalharam-se desordenadamente pela costa desde o Gronho até à Serra do Bouro, Vau, Óbidos, Baleal e Peniche tendo aparecido despojos na Ericeira.

O povo, quando soube do naufrágio, acorreu às praias somente para procurar bens para roubar, pelo que os cadáveres foram despojados dos seus bens e sedas, chitas, fazendas e caixas de vinho que deram à costa foram roubadas sem qualquer pudor. Nem os guardas designados para proteção conseguiram travar aquela vaga humana, que avançava em busca de riquezas, uma turba que varria tudo o que aparecia pela frente, dando azo a uma cobiça desmedida e nunca vista por aqui.

O S.S. Roumania ali ficou e em 1963 foram realizados trabalhos que tiveram como objetivo o desmantelamento e recuperação de destroços. Foram recuperadas máquinas de costura intactas e ainda alguns fardos de chitas e de fazendas que estavam em bom estado. Foram ainda avistados no porão material ferroviário e até uma locomotiva desmontada.

 

A lareira quase apagada, ainda crepita suavemente, no ar, o cheiro a madeira enche os pulmões de uma sensação e conforto traz-me de volta à realidade. Os pés gelaram em contato com o chão de mosaico e o copo de aguardente velha, vazio, repousa na beira do sofá.

O vídeo, de 2019, prova que tudo aconteceu, há exatamente 128 anos, e que no mar da Foz do Arelho, repousam para todo o sempre sonhos e vidas, que partiram de Inglaterra para viver uma nova vida na India, mas que ficaram para sempre entrelaçados na história desta vila.  

 

Nota da autora:

Ao pesquisar na net sobre o que tinha acontecido naquela noite percebi que tinha muito em comum com o naufrágio do Titanic, que teria lugar 20 anos mais tarde.

A partir das fontes que utilizei para rescrever a história, não resisti a romancear um pouco o enredo para o tornar de leitura mais fácil.

Este texto foi escrito de acordo com informação recolhida neste site: https://arlindo-correia.com/061010.html e neste link: https://www.publico.pt/2017/10/28/local/noticia/naufragio-do-roumania-foi-ha-125-anos-1790375

 

Vídeo do navio na atualidade pode ser visto neste link:   

https://www.publico.pt/2017/10/28/local/noticia/naufragio-do-roumania-foi-ha-125-anos-1790375

 


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