Murtosa – Deixe-se Embalar Pela Canção do Mar


Saindo de Lisboa e subindo pelo litoral descobre-se um capricho do Oceano, que a certa altura, na sua viagem, resolveu entrar por terra dentro onde não seria de esperar, e banhar suavemente uma vasta zona formando assim a Ria de Aveiro. É lá que se descobre Murtosa, terra do Moliceiro e de gente que vive virada para o mar.

Existem muitos motivos para descobrir a Murtosa, mas o principal talvez seja a sua essência, uma essência pura e dura, feita de espuma do mar e embalada por trabalho difícil e por muito sofrimento. Impossível não nos vir logo à cabeça Dulce Pontes e a Canção do Mar, https://www.youtube.com/watch?v=v_2fyB4dj4U, não sentir um arrepio de emoção ao pensar nos versos “Fui bailar no meu batel/Além do mar cruel/E o mar bramindo/Diz que eu fui roubar/A luz sem par/Do teu olhar tão lindo”.


A essência do moliceiro












Ouvir o Mestre Rito na sua oficina onde constrói e repara ainda hoje os moliceiros, sentir o vento frio que nos chega da Ria e ouvir, um pouco mais ao longe, os homens que nos dias de hoje ainda trabalham na faina do mar é perceber que se por um lado esta é uma fonte de riqueza que alimentou famílias, também por outro roubou a outras quem elas mais amavam. A vida do mar é dura e as gentes da Murtosa sabem-no bem.

Longe vão os tempos em que muitas famílias viviam unicamente da pesca, sendo que a Ria, rica em bivalves, era uma importante fonte de sustento da região. Também longe vão os tempos em que o que se comia quando se saía para o mar era unicamente uma caldeirada, feita com o que pescavam e quando as marés deixavam. Nessa época todos comiam da mesma travessa, os garfos eram feitos com galhos, não havia facas, não havia pratos, dormiam em esteiras e cobertas dentro dos barcos, lugar onde nasceram muitos bebés.  Longe vai também a época em que nada se desperdiçava, por isso o berbigão e as enguias, que vinham da Ria, eram alimentos que faziam parte dos hábitos alimentares e o moliço (uma espécie de alga), era seco ao ar livre e utilizado pelos agricultores para adubar a terra. Por outro lado, as juntas de bois, presos com cangas de cores brilhantes, eram também muitas vezes usadas para puxar para terra os belos barcos coloridos, em forma de meia lua, para facilitar o regresso a casa dos homens cansados da faina do mar. A Murtosa era mesmo isto, um lugar onde o mar e a terra se cruzavam, terra farta porque era naturalmente rica, mas onde o trabalho impunha uma vida sofrida e difícil.

A Murtosa é o berço do barco Moliceiro, tradição que continua a ser cuidadosamente preservada sendo que é fácil encontrar, em cais e ancoradouros, estes barcos coloridos, que navegavam ainda hoje naquela que foi em tempos uma verdadeira via de comunicação marítima e que fez desta terra uma das mais importantes plataformas comerciais da região. Os moliceiros são ainda utilizados na pesca, mas muitos foram convertidos para o turismo pelo que vale a pena aproveitar e descobrir a região com uma perspetiva diferente da sua costa.

Os tempos mudaram mas não devemos esquecer que a Ria de Aveiro já foi um importante canal de comunicação, lugar onde se cruzava o sal, a telha e o tijolo vindos de Aveiro, com o moliço, o junco e o peixe da Murtosa, o adobe e a areia da Esgueira, a lenha, as pinhas e o vinho de Águeda. Além disso, era também por aqui que viajavam as vendedoras rumo ao mercado ou os romeiros imbuídos da sua fé.


Património natural e praias








Ainda hoje natureza domina a paisagem com mais de 80% do território integrado na zona de proteção especial da Ria de Aveiro. É que os deuses, possivelmente para compensar a exigência da vida, compensaram quem por lá vivia dando uma beleza paisagística natural, uma riqueza ambiental única e a dois passos de distância, o imenso areal da Praia da Torreira e ainda a tranquilidade das praias lagunares do Monte Branco e do Bico. E como se não bastasse para fazer feliz quem teve a sorte de pro lá nascer, a Murtosa foi ainda abençoada com um dos territórios mais planos de Portugal, onde é fácil deixar o carro de lado e partir à descoberta da natureza de bicicleta. Existem caminhos, desenhados ao longo das margens ribeirinhas ou por entre campos férteis, desenhados de forma a proporcionar passeios tranquilos e até uns piqueniques em família, em plena natureza. Apesar de por aqui ser tão fácil esquecer a civilização, fazendo um reset ao stress da nossa vida, este município orgulha-se de ter a maior taxa de utilização de bicicleta no país, pelo que existe também uma rede de ciclovias urbanas e de ecovias em crescimento.

  

Património cultural - dos Azulejos aos museus  










( fotos de Januário Cunha)
























Calculo que tenha sido um movimento que tenha tido tanto de anárquico como de espontâneo que tenha dado uma vida única às ruas da Murtosa. A cor apoderou-se das casas de janelas amplas para deixar entrar o sol e os azulejos das suas paredes criando paletes que eu acreditava não ser possível de combinar, dando um ar Kitsch a vivendas onde se descobrem ainda outros pormenores com interesse arquitetónico como os painéis de azulejo que retratam santos, textos escritos em latim, janelas onde o ferro assume um forte papel decorativo com finas flores, de cores, a emoldurar a obra, símbolos da cidade a decorar casas e mais painéis de azulejos, a ocupar paredes inteiras, que serviam para identificar estabelecimentos comerciais. Acredito que aquilo que em tempos terá sido relegado para segundo plano hoje em dia está a ser integrado na paisagem citadina, havendo construção a ser reabilitada e onde toda a escolha inicial de azulejos é cuidadosamente respeitada. Aqui descobrem-se só alguns exemplos, mas vale a pena passear pelas ruas da Murtosa descobrindo pequenos pormenores que nos podem escapar à primeira vista, mantendo a mente aberta para combinações de cores e géneros que nem sempre são fáceis de entender, mas que sem dúvida fazem parte da identidade desta terra.    

 Já que anda à descoberta da vila, a não perder a COMUR-Museu Municipal, que nasceu da antiga fábrica conserveira de enguia, que ali foi fundada em 1942. A proximidade da ria e o excedente de enguias criou as condições para que surgissem as Fritadeiras da Murtosa, senhoras que vendiam o peixe frito nas feiras e que colocavam o excedente em molho de escabeche dentro de barricas pequenas de madeira. No inicio dos anos quarenta do seculo passado, uma encomenda de 2.500 barricas de enguias, vinda de Lisboa e com destino à Itália, seria o primeiro passo para o nascimento desta fabrica de conservas e onde as principais produtoras, mulheres, se tornaram socias, fazendo parte da estrutura acionista da empresa, apesar de algumas delas nem sequer saberem ler. Convém recordar que nesta época as mulheres eram domésticas ou viviam da agricultura pelo que esta via de negócio foi algo muito inovador para a época.

A tradição das pequenas barricas de madeira para conservar havia de se manter por mais cerca de 40 anos, altura em que as enguias fritas passaram a ser colocadas em latas de conserva, enchidas com louro, alho, cravinho, uma medida de óleo e outra medida de vinagre, sendo que também podiam aparecer com picante, cenoura ou vinho, entre outros produtos.

A última sugestão, a não perder na Murtosa, a Casa Museu Custódio Prato, um lugar cuidadosamente conservado, um verdadeiro museu, com uma componente de ar livre, fundado a partir de uma casa familiar, um espaço muito utilizado pelas escolas para que os miúdos aprendam como foi a vida por aqueles lados e onde tudo está apresentado de forma a que  

Aqui recria-se como era a vida e a habitação de uma família de lavradores do início do século passado, até aos mais pequenos detalhes e descobre-se móveis, roupa, loiça e nos antigos currais, várias salas temáticas, cada uma dedicada a uma profissão diferente, apresentando no seu todo um espólio de mais de 5.000 peças.

    

Petiscos e pitéus, carne, conservas, confeitaria e muita caldeirada

(foto de Januário Cunha)










O 2º Festival de Gastronomia de Bordo, que promove a importância da pesca nos municípios de Peniche, Ílhavo e Murtosa, foi um bom motivo para descobrir esta região, até porque aqui a gastronomia é um prato principal para servir a todos. A referência foi e continua a ser as enguias, que são mais usualmente degustadas em escabeche ou na caldeirada ou então em conserva. Descobre-se uma gastronomia rica onde pequenos detalhes como o unto, gordura nobre do porco, salgada e uma pitada de açafrão, conferem um sabor único a este prato típico.

Dos produtos tradicionais gastronómicos, destaque para a Carne Marinhoa, que se produz a partir de bovinos da raça, criados de forma tradicional. A carne obtida possui características que merecem destaque como o sabor a suculência sendo que o aspeto da gordura tem um ar amarelado e homogéneo e a carne, dependendo da idade do animal, pode variar entre o rosa claro e vermelho escuro.

Fundada em 1964 por José Cunha Guedes, dizem que aqui é que estão os melhores pasteis de nata de Portugal. De massa folhada fina e estaladiça e com um recheio leve e fluido diria que são sem dúvida excelentes, mas as surpresas não ficam por aqui, sendo muito difícil escolher entre esta opção e o Pão de Ló Barquinho, cujo ingrediente principal são ovos moles e que se apresenta numa caixa em formato de moliceiro sendo que pode ser consumido à colher.

Há 56 anos exatamente no mesmo lugar acredito que quando a Pastelaria Ancora foi inaugurada tenho sido vista com grande surpresa. Tratava-se de uma pastelaria fina, com muito traços de requinte onde ainda hoje, nas suas paredes que nos parecem querer contar tantas histórias, se destaca o gigante painel, com moliceiros.     



    




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