O titulo do livro "As Casas Também Morrem", sugestão de
leitura para este Verão, deixou-me a pensar numa outra história que não resisto
sem vos contar.
Eu sei que é mesmo assim, algumas casas acompanham o ciclo
de vida dos seus donos e tal como alguns animais de estimação desistem da vida
quando eles se vão. Eu sei de uma casa exatamente assim, era a casa da minha infância
na aldeia.
Esta casa quase que era mágica, no inicio pequena, cresceu
ao ponto de albergar toda a família, que nos períodos de férias incluía pais,
filhos e netos. Demos-lhe vida e cor mas agora, com o passar dos tempos, voltou
a mirrar e ficou novamente pequenina. Espantoso não é ? mas fácil de entender
porque se as casas morrem é porque vivem toda a vida com os seus donos,
ganhando-lhe um amor tão puro, que só os objetos podem sentir.
Eu tinha uns 6 anos quando os meus pais compraram a sua casa
na terra. No meio da aldeia, de frente para o largo, no alto de um pequeno
monte lá estava ela, pequena e feliz, em tons de verde, toda decorada com
mosaicos de pequenos vidros brilhantes. De um lado e do outro pequenas casas muito
velhinhas assinalavam ainda a presença dos meus avós neste mundo. Quando acabávamos
de subir, do lado esquerdo ( o do coração), um enorme portão de metal impedia a
entrada, não deixando ver nada para dentro. Quando se abria, um pátio alegre de
calçada portuguesa e um pequeno poço, decoravam o espaço, em redor, casas,
adega, arrumos e garagem, tudo térreo, constituíam a casa que tão bem me lembra
a minha infância. O que era para mim uma casa de férias era para os meus pais a
realização de um sonho e uma oportunidade para celebrar as alegrias. Lembro-me
das matanças do porco, pretexto para juntar tios, tias e primos ao redor da
mesa, posta muitas vezes no quintal. Foi exatamente aqui que nos juntamos
todos, uma ultima vez, antes da minha avó materna falecer de repente, durante o
sono. Nunca tinha lidado com a morte e
deve ser por isso que ainda me lembro daquele ultimo almoço, num dia quente que
devia ser de Verão, mesa comprida posta na rua, a azafama do entra e sai da
cozinha, os tios de copo de vinho na mão e as tias a lavar as tripas do porco
nas traseiras da casa.
Quando vínhamos embora, para regressar a Lisboa, o reflexo
do sol que teimava em passar pelas precianas dava aquela casa um toque
tranquilo, de paz, de quem ia ficar ali à espera do nosso regresso.
No inverno lembro-me do Natal, as paredes da cozinha a
escorrer agua de tanta humidade, as camas geladas de tanto frio e a luz que
teimava em faltar, dando um tom triste a muitos serões onde eramos obrigados a
ir mais cedo para a cama, tristes e vencidos pelo tédio de quem nada podia
fazer para remediar a situação. Nas manhãs geladas do campo, depois do jantar
da consoada, com um xaile de lá a tapar-me os ombros, desfilava os meus livros
da Anita, os carros telecomandados e as bonecas enquanto me deixava levar pelo
gosto de nada fazer e inventava amigos para partilhar as minhas brincadeiras.
Verão após Verão, Inverno após Inverno, fui crescendo e a
casa pareceu crescer comigo. O sótão, desaproveitado, encheu-se de quartos, 3,
para acolher todos. No rés do chão, mais
4 quartos completavam a oferta que permitia acolher toda a família, entretanto
aumentada pela chegada dos netos.
Os meus pais sorriam, ralhavam, trabalhavam e reuniam a família
e nós, na nossa vida, nem percebíamos que o tempo passava ligeiro e que o que
se vivia já não se repetia. A casa viu partir o meu avo paterno, e depois muito
suavemente o pai do meu pai e no fim, a mãe do meu pai.
Os encontros de família foram ficando diferentes à medida
que o tempo passava. Os que partiam não foram esquecidos mas os seus lugares
foram ocupados por outros, que chegaram mais recentemente. Durante este tempo a
casa viveu feliz, cheia de atenção. O poço desapareceu, o portão mudou-se para
a subida do pequeno monte e o casario que o ladeava ganhou nova vida. O tom verde vidrado desapareceu
porque já não estava na moda e os tons claros apoderaram-se do espaço. A lenha
amontoada num canto estava abrigada do frio e nela gatos vadios abrigavam-se do
frio do inverno. Nesse período tivemos muitos gatos, uns que marcaram mais do
que outros mas sem duvida que ajudaram a construir também eles a história desta
casa.
Os anos foram passando e com eles a casa foi mudando. No sótão,
os divórcios trouxeram invernos frios e verões sem cor, aos poucos foi perdendo
a mobília e depois o toque acolhedor, por fim, as tabuas de pinho que cobriam
toda a superfície e que davam o conforto acolhedor da madeira começaram a cair,
com certeza tristes pela falta de companhia. Quando o telhado ficou velhinho
demais e teve de ser substituído, todo o sonho de um sótão encantado caiu com
ele. Por esta altura, no centro do pátio um baloiço fazia as delicias do meu
pai, Verão e Inverno, lá estava ele a ouvir o seu rádio, enquanto um gato lhe
fazia companhia. Nos últimos tempos, já cheio de dores, parecia ser no seu
baloiço que ainda encontrava alguma tranquilidade. O meu pai já foi mas o
baloiço continua no pátio, acho que ninguém tem coragem de o tirar de lá.
E aos poucos a casa foi morrendo também, o tom viçoso,
amarelo, deu lugar a uma cor mais pastosa, embrulhada no efeito que a humidade
tem sobre as coisas. Olhando à volta as flores crescem selvagens e as couves,
alfaces e feijão verde à muito que desapareceram dos canteiros.
Pequenos detalhes de uma casa que está a chegar ao seu fim,
um muro que precisa de concerto, uma parede que dá de si…as janelas, de madeira
amareleceram com a idade e a casa, que ficou de novo pequena, parece agora
grande demais para a minha mãe que por lá vive sozinha.
No quintal, os gatos ainda por lá andam, agora uns bebes, em
breve juniores e depois vão com toda a certeza levar os seu filhotinhos para
conhecerem a casa. A minha mãe, já com passos lentos, ainda se ri e vai-lhes
dando de comer. A sua companhia quando está por lá.
Olhando à volta sente-se um equilíbrio muito ténue, a vida
do meu pai, dos gatos, da minha mãe e da casa estão todos interligados. O desaparecimento
de cada um é mais uma ferida aberta na casa, uma marca que já não vai sair.
A casa representa as suas vidas. Embora enfraquecida,
velhinha e débil, no quintal as laranjeiras e os limoeiros ainda se apresentam
prenhes de vida e sabe tão bem trazer um pouco de lá connosco. Só a videira,
por falta de tratamento, é que já não nos dá uvas boas. Os bagos gordos da
casta de Santa Maria são agora uns bagos escuros, que caiem antes do tempo,
tristes pela falta de cuidados.
As Casas Também Morrem, envelhecem, acompanham os donos e sabem
quando se aproxima a época que determina o seu fim.
Todas as vezes que chego ao largo sinto a nostalgia
apoderar-se de mim. Recordo-me dos tempos alegres, em que a minha mãe se
despedia com um sorriso enquanto desejava boa viagem, recordo-me do meu pai,
que quando me despedia, me olhava nos olhos e despedia-se de mim…afinal aquela
podia ser a ultima vez…..e não era! E eu voltava e ele sorria iluminado por me
ver chegar e durante um tempo tudo ficava bem, a casa não envelhecia e nós
eramos felizes com estes pequenos detalhes.
As casas também morrem, deixam-se ir pela força dos tempos.
As casas sabem mais coisas do que nós sabemos, as casas, tal como as pessoas,
morrem quando desistem de viver.
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