A Fantástica História da Menina Peru



Pat era uma menina muito doce. Magrita, de cabelo castanho aos caracóis, Pat sabia que apesar de aparentar ter somente 7 anos, o melhor lugar do mundo para estar era o sofá da Sofia e do Luís, os caseiros da quinta, que a acolhiam com muito carinho.
Sofia recebia-a sempre com um sorriso e um abraço quando ela chegava da escola e todos os dias Pat corria para o sofá, cobria-se com a sua manta e bebia regaladamente um copo de leite enquanto mordiscava umas bolachas, depois, quando estava mais cansada acabava por dormitar, noutros dias aproveitava para estudar pois sabia que estudar era importante para ter um bom futuro.
Pat sabia muita coisa, a sua vida ainda curta não tinha sido fácil, do pai e da mãe não tinha muitas recordações e estava sozinha no mundo desde que se lembrava. Vagueando só pelos campos não sabia como tinha conseguido sobreviver. As bagas e frutos eram a sua comida e os animais do campo a sua companhia. Um dia, num inverno muito frio, era ela mais pequenina, abrigara-se num galinheiro junto com umas galinhas e uns perus, ali estava mais quentinha e confortável, e adormeceu, num sonho colorido onde havia arcos iris, animais coloridos e muitos sorrisos por todo o lado.
Pouco depois Pat acordou sobressaltada com os gritos. A dona da quinta, uma bruxa muito má, não tinha gostado nada de ver aquela pequena maltrapilha, descalça e suja, que se preparava com certeza para lhe roubar os ovos e fugir. A bruxa levantou a sua varinha, ouviu-se um riso maquiavélico e baixando-a com força gritou – Já que gostas tanto de perus condeno-te a ser um deles! Quando for dia serás uma menina, quando anoitecer serás igual a eles.
Pat levantou-se e correu, correu até não conseguir mais. Quando já estava muito longe parou para olhar para si, continuava a ser uma menina, descalça e quase sem roupa e o frio entranhava-se pela pele até aos ossos. Bem ao menos não chovia, Pat encolheu os ombros e começou a caminhar. Estava o dia a acabar quando se começou a sentir estranha – Oh, não, pensou Pat, está a acontecer! Horrorizada viu que o seu corpo se transformava num pequeno peru! Ficou em pânico, assustada e a tremer não sabia o que havia de fazer. O que tinha feio de errado para estar tão abandonada no mundo à merce de gente tão má?
Mas tudo isso tinha sido já há algum tempo, Pat não sabia quanto. O tempo passava e ela preocupava-se em sobreviver. Raramente via outros seres humanos e muito menos crianças, vivia sozinha no seu mundo, com ténues recordações do passado e sem pensar no futuro. Pat foi o nome que inventou para si própria pois a vida ignorava-a tanto que nem lhe tinha dado um nome. E afinal precisava de um nome para quê se não havia ninguém na sua vida para a chamar? Nas quintas por onde passava via gente que chamava uns pelos outros, via sorrir e ouvia gargalhar, coisas que ela não entendia pois nunca tinha conhecido a felicidade.
Perdida nos pensamentos viu assustada que de repente já estava a anoitecer outra vez, e voltava aquela sensação estranha do seu pequeno corpo a transformar-se. Ainda as dúvidas rodopiavam na sua cabeça quando uma mão forte a agarrou e disse: - Então pequeno peru saíste do pé dos teus amigos? E dito isto levantou-a do chão e levou-a para um palheiro muito grande e arejado, cheio de perus onde a deixou ficar.
Pat estava tão cansada e ali estava tão quentinho que aninhando-se adormeceu profundamente. Nessa noite sentia-se muito confortável e dormiu a melhor noite de que tinha memória enroscada nos seus novos amigos.
Passou muito tempo e Pat nem percebeu que já era de dia há muito e que o caseiro da quinta já tinha deixado os perus em liberdade para aproveitarem o dia e penicarem umas ervas frescas. Acordou com a luz do sol a bater-lhe em cheio nos olhos quando alguém abriu a porta do palheiro e sentando-se de repente viu à sua frente um homem, de corpo forte e musculado e descendo com cuidado olhar viu a mão forte que a agarrara na véspera e a levara para o palheiro. O ar de espanto do caseiro dominava o espaço, estava tão espantado de ver aquela pequena menina, suja e despenteada que não conseguia articular palavra.
Por sua vez Pat estava desesperada e cansada, o que a esperava desta vez depois do que acontecera já na sua curta vida? Não gostava de se cruzar com adultos porque eles eram sempre cruéis para ela, preferia até que a ignorassem, mesmo quando desesperada mendigava de porta em porta por um prato de sopa quente. Como explicar como tinha ido ali parar, que não era uma ladra e que só tirava alguma coisa quando o seu pequeno estomago não se calava e ela já não sentia forças para continuar a andar? Pat não aguentou a pressão e começou a chorar, chorou pela fome, pelo frio, pelo abandono, pelos maus tratos, pelo sofrimento, pela dor, pela falta de amor, pela falta de carinho, chorou por ela e por todos os outros meninos, chorou sem conseguir parar de chorar.
Luís, o caseiro baixou-se, afastou-lhe os cabelos dos olhos olho-a nos olhos e deu-lhe um abraço, Pat não conseguia parar de chorar e Luís, que não sabia o que fazer, pegou na menina ao colo e levou-a para sua casa onde sabia que a sua mulher, Sofia o esperava enquanto preparava doces para uma grande festa que ia haver na quinta.
Nenhum deles sabia o que era aquele abraço. Pat nunca teve o amor dos pais ou de alguém no mundo e Luís, embora adorava ter enchido a sua casa com filhos mas tal nunca tinha sido possível. Vivia feliz com a sua Sofia, tranquilos na quinta onde eram muito bem tratados e onde tinham a sua casa e um pequeno terreno que cultivavam mas sentiam a falta de crianças para animar os seus dias. Havia um vazio no seu coração que compensavam com o amor que sentiam um pelo outro mas tinham optado por não ter muitos amigos pois sofriam porque não se sentiam uma família completa. Também eles tinham passado muitas noites a chorar, por um amor imenso que tinham para dar e que tinha de ficar recolhido nos seus corações. Em tudo isto pensava Luís enquanto levava a pequena Pat ao colo, que entretanto se calara com a surpresa do que estava a acontecer. Dentro do seu coração acendia-se uma pequena chama de esperança, uma acendalha de um sentimento que não tinha nome, um aperto de alegria, algo que só vivera em sonhos e que não pensava poder ser real. Sem pensar Pat colocou os pequenos braços à volta do pescoço de Luís, fechou os olhos e deixou-se ficar aninhada.
Estavam já na soleira da porta e Luís começou a gritar pela Sofia sempre com a pequena Pat nos braços atravessou a casa. Passou pela sala, entrou na cozinha a saiu pela porta das traseiras, para um pequeno quintal cuidadosamente cuidado, cheio de árvores e de pequenas roseiras, a anunciar uma primavera colorida e feliz.
Sofia virou-se e abriu os olhos de espanto sem conseguir emitir qualquer som. Quem seria aquela criança tão suja e maltrapilha ao colo do Luís?
Pat espreitou por entre os braços e ao ver o ar assustado de Sofia tremeu de medo com as más recordações que lhe assaltaram a alma de repente. Ao senti-la tremer, Luís apertou-a com carinho e disse-lhe baixinho para não ter medo. Os olhos de Pat cresciam em todas as direções, a admirar o jardim arranjado, os pequenos muros de pedra muito bem cuidado e pequeno portão de madeira que separava a casa e o jardim de uma zona de árvores de fruta e vinha. Ali parecia ser a casa de gente simples e feliz, suspirou e olhou de novo para Sofia, que entretanto retomara a energia habitual e dizia muito enervada: - Não sei quem é essa criança nem onde a foste encontrar mas é urgente dar-lhe um bom banho e uma refeição quente!
E dizendo isto correu para dentro de casa, pondo a água quente a correr na casa de banho. Luís não sabia o que fazer com a menina por isso levou-a com carinho e depositou-a nos braços de Sofia.
-Hora do banho!! Gritou Sofia, fazendo Pat saltar. A menina continuava calada sem saber o que pensar, na realidade nem sabia bem o que queria dizer aquela frase que acabara de ouvir da boca da Sofia.
Já na casa de banho, com o aquecimento ligado, Sofia tirou os trapos à pequena Pat e colocou-a com cuidado na banheira. Pat estava espantada, não sabia que a água servia para mais coisas para além de beber e de cozinhar mas aquela sensação de calor a percorrer o seu corpo todo era muito boa e relaxante. Fechou os olhos e sorriu enquanto Sofia, sempre acelerada, dizia bem alto que nunca na sua vida vira uma criança tão suja, tão abandonada, tão magra e com um cabelo tão enrolado.
Na sala Luís, perplexo com toda a situação, só ouvia a voz da sua mulher a falar sem parar, e esperava ansiosamente pelo fim daquele banho que durava uma eternidade.   
Minutos que pareceram horas e saiu da casa de banho uma pequena Pat de olhos grandes a admirar a casa cuidadosamente arranjada e logo atrás Sofia, toda cheia de energia, a gritar que não era possível aquela criança ser tão magra e que a sua camisa e o seu casaco eram um vestido até aos pés para ela e sem parar, pegou-a e sentou-a no sofá bem perto da lareira enquanto lhe dizia- Miúda, vais-me contar a tua história mas antes vais comer uma sopa acabada de fazer!
E dito isto arrancou para a cozinha ainda a gritar – Luís, aí de ti se a deixas fugir, com este frio essa criança morre gelada lá fora!
Para o Luís as palavras da sua mulher eram sempre desejos para cumprir, cuidadosamente estendeu uma manta para Pat, que continuava sem emitir som, sempre de olhos muito abertos, a querer guardar cada bom momento que estava a viver.
Voltando a baixar o braço, sentado no sofá, Luís pensou: - Deve ser surda-muda, só pode….
 Momentos depois e já voltava Sofia que trazia um tabuleiro com um prato de sopa a fumegar, um copo de sumo de laranja e uma torrada. Sentando-se ao lado de Pat colocou o tabuleiro no seu colo e juntos ficaram a observa-la.
Primeiro o seu olhar caiu na comida, depois passou por eles dois devagar, e depois novamente na comida….Aquele cheiro de sopa estava a dar-lhe uma fome, nem se lembrava de quando tinha comido pela última vez e nunca tinha comido nada assim!
- Então não comes? Era novamente a voz estridente e nervosa de Sofia. - Olha, deixa lá, abre a boca que desta vez eu ajudo-te! E sem hesitar levantou a colher na direção da boca da Pat e colherada após colherada deu-lhe a sopa toda. – Agora vá, o sumo e o pão tu consegues, disse já um pouco mais calma enquanto lhe tocava na palma da mão.
Com os olhos novamente rasos de lágrimas Pat comeu sem emitir palavra, sempre a olhar para a comida e para o tabuleiro. No final Sofia riu alto e disse – Anda Luís, esta miúda tem uma história para contar mas agora ela vai querer dormir um sono descansada! E disto isto, tirou-lhe o tabuleiro do colo, ajudou-a a deitar-se no sofá e tapou-a com a manta. Nem um minuto depois Pat dormia a sono solto, quente e tranquila pela primeira vez na vida.
- Anda Luís, vamos conversar para a cozinha.
A casa era quente e confortável apesar de ser toda em pedra e ficava num canto da quinta. Aparentemente térrea, quando vista de fora, na realidade era composta por dois pisos. No andar de baixo estava a sala, a cozinha, uma arrecadação e uma casa de banho, subindo as escadas de madeira encontravam-se lá em cima dois quartos e outra casa de banho. Embora pequena, a casa estava cuidadosamente tratada e a madeira e a pedra eram os materiais dominantes. A grande lareira, desproporcional para o tamanho da sala, aquecia toda a casa e enchia o ar de um agradável aroma a madeira e o ar de um tom quente, amarelado.
Na cozinha Sofia puxou Luís para perto da porta de saída para o quintal. Toda em branco e com cortinados com florezinhas nas janelas, a cozinha antiga tinha o mesmo ar limpo a acolhedor do resto da casa. Pelas bancadas e na mesa viam-se os doces que tinha estado a cozinhar para a festa que os patrões iam dar mais logo. Participar dessa forma na festa era para ela um prazer e uma forma de agradecer aos patrões pela vida tranquila e feliz que levava na quinta.
- Luís, disse Sofia, baixo mas quase a gritar, - Luís! Onde é que encontraste aquela criança? Quem é? Como é que veio cá parar? O que vamos fazer? Luís acorda homem, quem é aquela criança?
Luís sentia-se em transe sem conseguir entender as últimas horas daquele dia e tentou explicar o melhor que conseguia que a tinha encontrado no palheiro junto com os perus, a dormir na palha e que como não sabia o que fazer a levara para sua casa.
Sofia era uma mulher muito prática, tinha estudado numa grande cidade mas desistira de tudo para ter uma vida simples ao lado de quem amava do fundo do coração. Aprendera a aceitar não ter filhos e vivia feliz na tranquilidade da quinta. Já não esperava mais, aprendera a aceitar a vida como ela era mesmo que nem sempre fosse como tinha sonhado, e por isso tudo era feliz.
-Luís, ai! Não sei o que fazer! Olha, vamos fazer desta forma, ainda é cedo, a miúda adormeceu e pelo ar dela vai dormir um bom par de horas, tu voltas para o trabalho e ao almoço conversamos sobre o que vamos fazer, concordas?
Ainda sem entender o que se estava a passar, Luís disse que sim, colocou o chapéu na cabeça e saiu pela porta da cozinha. Sofia voltou aos doces que enchiam a casa de um aroma quente a canela misturado com frutos e um pouco de limão, e assim passaram as horas até ser altura de preparar o almoço, na sala Pat continuava a dormir profundamente.
Luís entrou por onde tinha saído horas antes e seguiu na direção do fogão onde a sua mulher terminava de fazer a refeição. Carinhosamente depositou-lhe um beijo na testa e perguntou – A miúda?
- Continua a dormir profundamente, respondeu Sofia. E continuou, novamente ganhando balanço, num turbilhão de palavras que davam corpo ao turbilhão de pensamentos que rodavam de novo na sua cabeça – O que vamos fazer? Chamamos a polícia? Quem será esta miúda? Por outro lado, ela é tão doce vai para um orfanato? O que vai ser dela Luís? O tom de voz estava a subir mesmo sem eles darem conta e na sala Pat acordava e escutava o que estava a ser dito sobre o seu futuro. Sem fazer barulho, colocou os pezitos enfiados numas meias de lá gigantes no chão, levantou a roupa que a fazia tropeçar e pé ante pé dirigiu-se na direção da ombreira da porta da cozinha. Ficou a ouvir os adultos a falar sobre si e o seu futuro. Apesar de ser tão miúda já não tinha energias para andar mais tempo sozinha no mundo e aquela casa era tão quentinha….Começou a sonhar acordada…Quando de repente foi trazida de volta à realidade. Sofia acabara de dizer ao marido – Não se fala mais nisto, não sei qual é a história dela e tenho pena que algumas crianças sejam ignoradas por todos enquanto sofrem dores que nem aos adultos deviam ser permitidas. Repito Luís, não sei qual é a história mas chama-se a alguém, a miúda vai para o orfanato e assunto arrumado!
- Nãããããoooo! Gritou a Pat entrando na cozinha, não me façam isso, não chamem ninguém, olhem eu vou já embora, só tempo de ajeitar esta roupa e vou já, não se preocupem, vêm? A roupa já está boa! Disse Pat enquanto enrolava tudo e segurava a roupa com os bracitos.  
Sofia e Luís olharam-se nos olhos e baixaram-se – Porque não queres que se chame ninguém? Quem és tu? Como te chamas e de onde vens?
Pat percebeu que não tinha alternativa, baixando os braços deixou a roupa cair para o chão e começou a contar o que se lembrava da sua vida, de não ter tido ninguém que amasse, de estar a crescer sempre sozinha e sempre com fome. De como os adultos e por vezes outras crianças a tratavam mal por ela andar sempre suja e descalça, de apanhar umas tareias por roubar qualquer coisa para comer, de ser escorraçada quando só queria um pedaço de pão para não sentir mais dores no estomago. Da família não tinha recordações simpáticas, lembrava-se de apanhar mesmo sem ter feito nada e de passar fome, um dia fora deixada sozinha numa rua e desde aí vagueava à procura de um lugar para dormir e de um pouco de comida. Respirando muito fundo e deixando cair uma lágrima contava como tinha passado a ser diferente no dia em que a bruxa a encontrara a dormir no palheiro e que desde esse dia, amaldiçoada para sempre, estava impedida de voltar a sonhar com uma vida igual à dos outros meninos pois sabia que ser diferente era ainda pior do que andar com fome e descalço e que as outras pessoas a iriam julgar sempre pelo seu aspeto e nunca pelo seu coração. 
Com as lágrimas a correr pela cara abaixo contou que a magia da bruxa a deixava ser menina durante o dia mas a transformava em peru assim que começava a ficar de noite e que dessa forma nunca seria aceite, iria ser muito gozada e desprezada pelos outros.
Os dois adultos não queriam acreditar naquela história, estavam espantados, hirtos, a ouvir sem articular palavra enquanto a sua mente tentava processar toda aquela informação. Não podia ser, pensavam os dois ao mesmo tempo, não bruxas más nem existem meninas-peru!
Ainda a falar, a menina contou que não se lembrava de ter tido alguma vez um nome mas que quando falava consigo própria se chamava Pat e que eles também a podiam chamar assim e dito isto, aproximou-se dos dois e abraçou-se às suas pernas.
As lagrimas corriam nos olhos de Sofia e do Luís sem saber que decisão tomar.
Sofia, pragmática como sempre e ainda sem acreditar em tudo o que acabara de ouvir disse: - Pat vamos fazer assim, por agora vais ficar connosco mas como os donos da quinta vêm cá a casa com frequência e sem avisar, quando começar a anoitecer tu vais para o palheiro. Assim durante a noite és peru e estás com os outros perus e de dia é uma menina e estás connosco o que te parece? A todos vamos dizer que és filha de uma prima, que está muito doente e que nos pediu para tomar conta de ti. À noite também não é problema pois vamos dizer a todos que estás habituada a dormir cedo por isso não estarás presente em algum jantar que possa haver cá em casa.
E dito isto sem esperar pela resposta de ninguém disse: - Luís vou às compras à cidade, esta criança precisa de umas coisas. Ficas com a pequena Pat e quando virem buscar os doces orientas tudo, ok? Pegou nas chaves do antigo Renault, pegou na mala e saiu a correr.
Olharam um para o outro, sorriram-se nos olhos pela primeira vez e o Luís disse – Anda, senta-te à mesa, vamos almoçar!      
O tempo foi passando tranquilamente, Pat andava na escola da aldeia onde não tinham pedido muitos documentos para a aceitar e conforme combinado, todas as noites, o Luís levava com muito carinho um peru para o palheiro, um peru distraído que parecia nunca encontrar o caminho como os outros. 
E os meses passavam tranquilos e a vida voltara à normalidade, Sofia e Luís sentiam-se completos e Pat era uma criança viva, meiga e muito tranquila que aprendia com facilidade na escola.
E quando parecia que já tinha acontecido tudo o que havia de pior para acontecer, eis que um dia de manhã muito cedo, ainda antes do nascer do dia, se ouve um grande alvoroço na quinta O dono, sem avisar, resolvera vender todos os perus porque precisava desesperadamente de dinheiro para pagar salários e os bichos podiam render-lhe uma boa maquia. Eram animais gordos, felizes e saudáveis que tinham tido uma boa vida ao ar livre e que agora seguiam para o seu destino.
Sofia acordou com um barulho estranho, sentou-se na cama, veio à janela do quarto ver o que se passava e viu ao longe as camionetas a carregar o último lote de perus e a começar a abandonar a quinta.
Não queria acreditar que tal estava a acontecer, estava a começar a amanhecer mas ainda não era suficientemente de dia para a pequena Pat voltar a ser menina.
Sentiu uma dor forte no estomago e deu um grito – Nããããããõ!!!!!
Luís sentou-se de repente na cama - O que foi Sofia?!
-Luís, Luís, a nossa Pat Luís! A nossa Pat, os perus Luís, o teu patrão vendeu todos os perus e a Pat foi junto com eles!! Vão morrer todos, salva a menina Luís!! Estava desesperada. Gritava e esbracejava como uma alucinada enquanto Luís enfiava a correr as galochas mesmo por cima do pijama e corria escadas abaixo. Ela seguiu-o também de pijama, a correr em direção ao palheiro da quinta. Quando lá chegaram a última camioneta estava pronta para seguir viagem e os perus agitavam-se nas suas gaiolas de metal. - Pat, Pat! Onde estás menina? Querida Pat onde estás? Diziam os dois, desgrenhados, a espreitar para dentro das gaiolas, a procurar em cada canto da camioneta. Agora já era de dia, no fundo de uma gaiola ouviu-se um choro muito baixinho e uma vozinha que dizia – Estou aqui, no fundo da gaiola. Vocês vieram salvar-me?
A correr abriram a gaiola e retiraram a menina. A sua volta ninguém entendia nada. Os três abraçavam-se e ouvia-se – Querida Pat, nossa filha, não conseguíamos viver sem ti e uma voz trémula, baixinha, que dizia – Papá, Mamã tive tanto medo!
Nunca ninguém na quinta percebeu o que se tinha passado naquele dia e nunca ninguém perguntou porque, como que por magia, o feitiço desfez-se para sempre. No dia em que se cruzara com a bruxa má a menina saiu a correr e já não teve tempo para ouvir o fim da sua profecia: - Já que gostas tanto de perus condeno-te a ser um deles, quando for dia serás uma menina, quando anoitecer serás igual a eles, porém, se alguém te amar por aquilo que és e não pelo que aparentas ser esta magia irá desfazer-se e tu voltaras a ser uma menina igual aos outros meninos.
Sentada no sofá, tapada com a sua manta e a beber regaladamente um copo de leite enquanto mordiscava umas bolachas Pat recordou a sua história e pensou que quando fosse crescida iria trabalhar muito para que viesse um dia em que fosse possível deixar de haver meninos que não eram amados só porque eram diferentes dos outros meninos.    
 

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